Gal Costa: 'A aproximação de um tempo sombrio ameaça a democracia'
Quando a pandemia eclodiu, em 2020, Gal Costa preparava as malas para uma temporada europeia do espetáculo "A Pele do Futuro". Precisou cancelar todos os planos e se isolar em seu apartamento em São Paulo. Durante esse retiro, a cantora de 75 anos olhou para a própria trajetória sob a perspectiva do presente. Desse movimento, surgiu o álbum "Nenhuma Dor", em que revisita seu repertório e divide os vocais com intérpretes masculinos influenciados por sua voz, como Zeca Veloso, Silva e Criolo.
Um ano depois, Gal foi obrigada a cancelar novos planos: com uma live marcada para este fim de mês, a cantora bateu um papo com Splash e, logo depois, a apresentação foi adiada indefinidamente —afinal, a situação sanitária do país só piorou. Ainda assim, a cantora se abriu sobre seu novo trabalho, seus posicionamentos contra o governo de Jair Bolsonaro, a vida na pandemia e as críticas à sua live de aniversário.
Splash: O álbum "Nenhuma Dor" expõe a forte influência de seu canto, estilo e repertório em artistas de diferentes gerações e nacionalidades. Quais aspectos de sua trajetória mais influenciaram outros artistas? Como você vê essa influência?
Gal Costa: Eu acho importante e interessante devolver, retribuir a uma outra geração. Eles bebem na minha fonte, assim como eu me influenciei por outros artistas. Em todo disco que você lança, você presta um serviço à cultura. Acho que se inspiram no meu canto, no meu modo de trabalhar de uma maneira geral.
"Nenhuma Dor" é um disco concebido e produzido durante a pandemia do coronavírus. O que levou você a se voltar para a sua trajetória nesse momento?
Esse é um momento em que as pessoas estão tendo prazer em ouvir música de catálogo, músicas da minha geração. Elas trazem uma memória afetiva, de um tempo que era bom.
Não criamos esse projeto com o objetivo de virar um álbum de carreira, foi um disco feito para trazer alegria para o público. É muito gratificante saber que esse disco pode levar um conforto, uma leveza para quem gosta e se conecta com o meu trabalho.
Como esse período tem lhe afetado?
Eu sou uma pessoa muito caseira, então, estar em casa não me afetou muito. Claro que não me isolava tanto, e sinto falta de estar com os amigos e dos palcos, principalmente, mas o momento exigiu o isolamento e eu aceitei.
É difícil para mim, como tem sido para todo mundo. Acho que aconteceu uma mudança de pensamento com muitas pessoas durante o isolamento, mas não toda a humanidade. A gente vê muita aglomeração nas ruas, sem máscara, nem todo mundo se preocupa.
Quais são os seus próximos projetos artísticos? Projetos com a obra de Milton Nascimento e Paulinho da Viola ainda estão em seus planos? Está confirmado um sucessor com vozes femininas para "Nenhuma Dor"?
Ainda não pensamos no próximo trabalho. Quero muito levar esse álbum para os palcos, mas quando todos estivermos seguros. Em relação ao disco com vozes femininas, não temos essa ideia. O ponto central do "Nenhuma Dor" são artistas homens que se influenciaram pelo meu trabalho, assim como João Gilberto me influenciou.
O clássico "Fa-tal - Gal a Todo Vapor" completa 50 anos em 2021. Como você avalia a importância do espetáculo hoje em dia? Quais sentimentos você associa ao período daqueles shows?
Foi importantíssimo. Eu me lembro que era divertido, alegre. Uma fase muito feliz.
Você comentou anteriormente que a turnê nacional de "Fa-tal" foi um período importante de renovação de público e da sua própria carreira. Como você acha que esse trabalho ajudou a remodelar sua carreira à época?
A cada lançamento e trabalho novo, percebo um público novo nos meus shows e ouvindo minhas músicas. Eu sou uma artista que gosta de ousar, de criar novos caminhos e de dar saltos na minha carreira. E tem sido assim nos últimos álbuns que eu lancei. Tudo o que fiz está perfeitamente inserido na minha história como cantora. Tudo o que eu fiz nos últimos discos está coerente com tudo o que eu já fiz. Arriscar me alimenta, sinto prazer em não ser igual em todos os trabalhos.
Você sempre abordou questões políticas em suas músicas e nos seus shows. O que você pensa dessa costura entre arte e política na sua carreira? Você acha que a crítica atribui um peso político excessivo a alguns de seus trabalhos?
Eu sempre me posicionei politicamente nos palcos. Hoje em dia, com esse governo, também acabei me posicionando fora dos palcos. Sou a favor da democracia, da liberdade, da vacina.
O que no atual governo levou você a se posicionar fora dos palcos? Em quais outros momentos da sua carreira você precisou fazer o mesmo?
Eu me posicionei na época da ditadura, no passado, não com um discurso político, militante, mas como uma postura de liberdade num momento em que havia muita injustiça social.
Agora, o risco da aproximação desse tempo sombrio ameaça a democracia.
Então, eu acho que realmente todo mundo tem que se posicionar, pois vivemos em uma democracia e temos que preservá-la.
A primeira live que você realizou, no seu aniversário de 75 anos, em setembro de 2020, pareceu ter alguns problemas técnicos, embora sua performance tenha sido elogiada. Como você avalia aquela apresentação?
Os problemas dessa live foram mais porque havia muitas ideias e pouco tempo para ensaiar, mas independentemente disso eu gostei muito. O importante é fazer a nossa presença, a nossa voz e as músicas que a gente canta, chegarem perto das pessoas. Nesse momento elas estão precisando muito de um alento, um ânimo. Em breve farei outra live, mais simples, com um repertório baseado nas minhas músicas de carreira.
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