Baseado em uma 'história real': as mentiras dos filmes do Oscar 2021
Este filme foi baseado em uma história real.
Quando a famosa frase surge no começo de um longa, nem sempre ela significa que tudo o que acontece na tela ocorreu mesmo na vida real. Hollywood sempre "emprestou" histórias verdadeiras e as distorceu para efeitos dramáticos, e os filmes do Oscar 2021 não são exceção.
Três dos oito longas que disputarão a estatueta de melhor filme no próximo domingo são inspirados em histórias reais, e todos eles "esticaram" a verdade um pouquinho para transformá-la em cinema. Confira abaixo as mentiras que cada um deles conta.
'Os 7 de Chicago'
O filme dirigido por Aaron Sorki para a Netflix biografa os sete ativistas contra a Guerra do Vietnã que foram presos e julgados após um protesto com ramificações violentas na Convenção do Partido Democrata, em 1968, em Chicago (EUA) —mas nem tudo o que rola em tela é verdadeiro.
- Sem infiltração do FBI: se Jerry Rubin fosse vivo (ele morreu em 1994, atropelado por um carro), ele provavelmente reclamaria muito da forma como foi retratado no filme de Aaron Sorkin --e com alguma razão. Enquanto, no longa, Rubin (Jeremy Strong) é mostrado como o amigo perenemente "chapado" e ingênuo de Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen), na vida real ele foi um ativista tão importante quanto seu colega de movimento. Ah, e aquela história sobre uma agente do FBI (Caitlin Fitzgerald) "seduzindo" Rubin para vazar informações dos ativistas para o governo? Completamente ficcional. Na realidade, Rubin foi seguido durante os dias que cercaram o protesto por um policial disfarçado, que nunca sequer fez amizade com ele.
- Violência inventada: o momento dramático em que o pacifista convicto David Dellinger (John Carroll Lynch) "quebra" o próprio código durante o julgamento e dá um soco no segurança do tribunal foi inventado por Sorkin. Na vida real, Dellinger chegou a ser detido pelos seguranças, mas "só" por interromper uma testemunha e chamar o promotor, Richard Schultz, de "cobra" e "nazista".
- Os mortos no Vietnã: o final de "Os 7 de Chicago", com Tom Hayden (Eddie Redmayne) lendo o nome de todos os soldados norte-americanos que morreram na guerra do Vietnã durante o julgamento, não aconteceu. Hayden fez dois discursos na fase final do julgamento, mas nunca usou o seu tempo para ler os nomes dos mortos. Os sete acusados como um todo, e David Dellinger em específico, tentaram em outro ponto dos procedimentos fazer a leitura dos nomes de algumas das vítimas da guerra (de ambos os lados, não só do exército dos EUA), mas foram impedidos pelo juiz.
- Mudança na linha do tempo: é bem comum filmes mudarem a ordem de acontecimentos para sublinhar a dramaticidade da história. Foi o que aconteceu quando Sorkin escreveu o discurso final de Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen) e incluiu uma menção do assassinato de Fred Hampton, líder do Partido dos Panteras Negras de Illinois (EUA). Na realidade, o último dia de Seale no julgamento (quando ele foi amarrado por seguranças e humilhado pelo juiz) foi em 29 de outubro de 1969, enquanto Hampton foi assassinado pela polícia de Chicago em 4 de dezembro do mesmo ano.
'Judas e o Messias Negro'
Por falar em Fred Hampton, outro indicado a melhor filme no Oscar 2021 aborda a vida deste importante ativista do Partido dos Panteras Negras. "Judas e o Messias Negro", de Shaka King, conta tudo sob o ponto de vista de William O'Neal (LaKeith Stanfield), que espionou Hampton para o FBI, mas toma algumas liberdades históricas.
- Como tudo começou: a prisão que inicialmente fez O'Neal se tornar um informante do FBI é um ponto de polêmica, mas nenhuma das duas versões "oficiais" é a que vemos no filme. Segundo o próprio O'Neal, tudo aconteceu quando ele e um amigo roubaram um carro, tiveram que deixar seus nomes e endereços em um bar de sinuca, e depois sofreram um acidente. Três meses depois, um agente do FBI o procurou dizendo que sabia de seus crimes, e que ele precisava colaborar com a agência se não quisesse ser preso. Já segundo o jornal Chicago Tribune, em matéria de 1978 que desmascarou O'Neal, ele se deu mal quando foi parado por um policial na rua, dirigindo um carro roubado, e mostrou ao oficial um distintivo falso para tentar convencê-lo de que era um agente federal.
- ... E como tudo terminou: no finalzinho de "Judas e o Messias Negro", vemos um trecho da única entrevista concedida por O'Neal em toda a sua vida, para a série "Eyes on the Prize", contando tudo o que fez contra Hampton. Em seguida, um letreiro nos informa que o ex-informante do FBI se matou na mesma noite em que o documentário foi ao ar, implicando fortemente que a culpa pelo que fez pode ter sido um fator na sua decisão --mas não foi bem assim. A série "Eyes on the Prize" de fato estreou em Chicago em 15 de janeiro de 1990 (data do suicídio de O'Neal), mas o episódio específico em que ele aparece só foi ao ar semanas depois, em 19 de fevereiro.
- Quem deu a ordem? Não há dúvidas de que o chefe do FBI, J. Edgar Hoover (Martin Sheen), era um racista inveterado, e ele com certeza aprovou a ação policial que resultou na morte de Fred Hampton --de fato, o agente Roy Mitchell, vivido no filme por Jesse Plemons, até recebeu um bônus salarial após o acontecimento. É mais difícil argumentar, no entanto, que ele tenha dado a ordem de matar Hampton diretamente, como é visto no filme. É bem mais provável que tudo tenha sido decidido internamente pelos encarregados do COINTELPRO, o programa do FBI criado para descreditar movimentos de direitos civis.
- Do dia para a noite: no filme, um dos momentos mais impressionantes é o confronto entre policiais e Panteras Negras na sede do partido, em 1º de agosto de 1969, em plena luz do dia, que é incitado quando os oficiais avistam O'Neal no teto do prédio carregando uma arma e disparam contra ele. Na realidade, esta data marcou sim um tiroteio entre policiais e ativistas, mas por volta da 1h da manhã, e iniciada quando oficiais alegaram ver dois homens entrando na sede do partido armados com espingardas e pararam para investigar --os Panteras dizem que a polícia atirou primeiro, e vice-versa. O confronto real terminou com a prisão de três membros do Partido e, como no filme, com os policiais colocando fogo na sede.
'Mank'
"Mank" mostra como o roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) deu à luz "Cidadão Kane", o clássico de 1941, mas será que tudo rolou assim como está no longa de David Fincher para a Netflix?
- Mank e a política: no filme, a mágoa de Mankiewicz com os figurões de Hollywood vem da campanha deles contra um candidato a governador da Califórnia (EUA), o socialista Upton Sinclair (Bill Nye). Embora a campanha de Sinclair, e a oposição dos chefes de estúdio conservadores, sejam reais, não há evidência histórica nenhuma de que Mankiewicz o apoiava --o roteirista, inclusive, nem foi um dos nomes de Hollywood que protestaram quando os estúdios "pediram" (era mais uma ordem do que um pedido) doações dos funcionários para o adversário de Sinclair na corrida pelo governo, o conservador Frank Merriam.
- As entrevistas falsas: ainda falando sobre a campanha de Sinclair... por incrível que pareça, é verdade mesmo que a MGM produziu entrevistas falsas com "apoiadores" e "opositores" do candidato e as exibiu nos cinemas antes de seus longas-metragens, buscando prejudicá-lo. No entanto, a figura de Shelly Metcalf (Jamie McShane), que em "Mank" dirige as gravações das entrevistas, se arrepende e acaba cometendo suicídio, é completamente inventada pelo script. O diretor da farsa na vida real foi Felix Feist Jr., que nunca demonstrou arrependimento pelo ato, e desfrutou de uma longa carreira no cinema e na televisão nas décadas seguintes à eleição perdida por Sinclair.
- O "vexame" final: Herman J. Mankiewicz compareceu a muitas festas na casa do bilionário William Randolph Hearst (Charles Dance), a inspiração por trás do protagonista de "Cidadão Kane". Hearst gostava das tiradas ácidas do roteirista, mas suas bebedeiras eventualmente começaram a incomodar o anfitrião, que simplesmente parou de convidá-lo. No entanto, não há nenhuma evidência histórica de que o grande confronto final entre os dois, em que um Mankiewicz bêbado dá show diante da mesa de jantar, detonando Hearst por suas ações contra a campanha eleitoral de Sinclair, tenha acontecido.
- Quem escreveu 'Kane'? Esta é uma daquelas "perguntas que não querem calar" em Hollywood. O filme de Fincher segue de perto a versão defendida por Mankiewicz por toda a sua vida e apoiada pela renomada crítica de cinema Pauline Kael, que argumentou em um artigo de 1971 que Orson Welles não havia mudado nada de significativo do script original. Já o próprio Welles sempre disse que ele e Mankiewicz escreveram rascunhos separados de "Cidadão Kane", e que ele, como diretor, escolheu quais partes usar de qual roteiro nas filmagens. O cineasta também sempre negou o rumor de que ele teria oferecido dinheiro a Mankiewicz para retirar o seu nome dos créditos de roteiro --uma cena que "Mank" inclui em seu clímax.
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