'Não é sobre dinheiro': regulação do streaming pode ajudar toda a economia
O surgimento das plataformas de streaming, primeiro com o crescimento da Netflix e a posterior eclosão de outros serviços, facilitou —e muito!— o acesso a produções estrangeiras. Filmes que estavam esquecidos pegando poeira em algum armário de Hollywood ou séries que nunca haviam estreado no Brasil passaram a estar disponíveis para o público por um valor mais acessível que o de uma TV por assinatura.
Mas será que essa mudança também afetou positivamente a produção de conteúdo nacional?
A resposta é complexa e, para chegar até ela, é necessário passar por outras questões. Segundo o colunista do UOL Ricardo Feltrin, a TV paga perdeu, desde dezembro mais de 600 mil assinantes, e o setor já recuou dez anos na base. Caso a perda de clientes continue no mesmo ritmo, toda a categoria pode desaparecer em até sete anos.
É claro, a diferença de preços e ofertas contribui para a diminuição gradual da programação linear em prol do vídeo sob demanda. O streaming deu ao consumidor um poder de escolha que, para a TV tradicional, é mais difícil de ser alcançado.
Mas existe uma regulação para a TV paga, a Lei do SeAC, que não cobre o streaming. E isso é um dos pontos que refletem diretamente na forma como as obras nacionais são percebidas pela audiência.
Dentro da Lei do SeAC, as operadoras de telecomunicação precisam cumprir com o pagamento de uma contribuição, que é a principal fonte de arrecadação do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Para a cineasta e produtora executiva Marina Rodrigues, o grande problema das plataformas de vídeo sob demanda é que, justamente por essa não-obrigação, elas não fortalecem o conteúdo nacional de forma suficiente.
Mesmo que essas plataformas estejam dispostas a investir em alguns títulos brasileiros, a concentração de obras nacionais ainda é muito menor do que a exigida e incentivada pela TV a cabo.
Para ela, existe ainda uma outra questão, que está na concepção das obras feitas para o on demand. "O realizador não tem muita liberdade criativa, e o resultado são obras parecidas em estética e narrativa."
Mas a situação tem um outro lado. A roteirista Luiza Conde, de "A Vila" e "Galera F.C." (que já está na HBO Max), acredita que as plataformas alimentam fortemente a indústria.
"Com o desmantelamento do fomento público ao audiovisual promovido pelo governo federal, os streamings surgem quase como uma tábua de salvação. Eu diria que o Brasil entrou na era dos streamings, em primeiro lugar, por necessidade. Hoje, as maiores produtoras olham para os streamings como primeira janela, porque são esses os players capazes de arcar com o desenvolvimento das obras sem, ou com pouco dinheiro público."
Derrubando o mito
Segundo Mauro Garcia, presidente-executivo da BRAVI (Brasil Audiovisual Independente), a preocupação em regulamentar o streaming é mundial. E incentivar o destaque a obras brasileiras nas plataformas é tão importante quanto a questão financeira, já que elas podem ter um reflexo positivo em outros setores da economia.
"Isso se reflete em turismo, por exemplo, porque ficamos com vontade de conhecer aqueles lugares. Nisso, os EUA sempre foram bem. Esse é um dos ingredientes que fazem todo o mundo querer conhecer Nova York ou Califórnia."
E não é como se o público não quisesse assistir às produções locais.
"A busca por obras que falem a nossa língua e retratem a nossa realidade, os nossos costumes e interesses é, sem dúvida, uma demanda do público brasileiro —e os streamings estão atentos a ela. Não à toa, estamos vendo as plataformas correndo atrás de suas próprias novelas."
Os impasses
Mas falar sobre a regulamentação das plataformas de streaming no Brasil se tornou um impasse no debate público, e um dos motivos é a controvérsia ao redor da Lei do SeAC. Alguns setores argumentam que ela não pode ser aplicada ao vídeo sob demanda, porque os serviços digitais não são de acesso condicionado —ou seja, não utilizam uma estrutura de telecomunicação para fornecer o produto.
Mas, segundo Marina, há outras formas de se interpretar a lei.
"Quanto mais atualizamos a tecnologia das nossas televisões e exigimos conteúdo em alta definição, mais elas precisam utilizar as estruturas das operadoras para gerar esse conteúdo para o consumidor. Isso acaba trazendo parcerias passíveis de serem entendidas como SeAC."
Hoje, há dois projetos de lei para regulamentar o streaming. Um, do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), está na Câmara. O outro, que está no Senado, é de Humberto Costa (PT-PE) e, segundo Mauro, tem algumas semelhanças com a Lei do SeAC.
Embora tenham suas particularidades, ambos os projetos concordam em uma coisa: querem a cobrança de imposto sobre o faturamento das obras, e não sobre o tamanho do catálogo.
"Tem a preocupação com a presença do conteúdo. Mas a cobrança sobre catálogo não reflete a receita. Achamos mais isonômico ser sobre faturamento, como no mundo todo."
Mas e todos aqueles filmes e séries que já existem no streaming?
É verdade que a Netflix, por exemplo, tem investido cada vez mais em produções brasileiras. "Sintonia" (2019-), "Modo Avião" (2020), "Bom Dia, Verônica" (2020-), "Carnaval" (2021) e "Cidade Invisível" (2021-) são apenas alguns dos filmes ou séries nacionais que fazem sucesso na gigante do streaming.
Além disso, também existe um esforço ativo em cooptar talentos para a plataforma. No último dia 13 de julho, a companhia anunciou o projeto Mais Brasil na Tela, que visa justamente disponibilizar maior volume de conteúdo nacional, já a partir deste mês.
"Abrir essa janela e mostrar para o mundo como vivemos e como nos articulamos é muito importante para revelar que o Brasil é um país diverso em seu DNA", afirma Christian Malheiros, astro de "Sintonia", por meio de comunicado oficial.
Neste sentido, associações de produtoras independentes se organizam para garantir mais direitos aos produtores dentro dos acordos de licenciamento.
"Ao negociar com uma plataforma de streaming no Brasil, a produtora precisa ceder seus direitos patrimoniais para a empresa, ficando apenas com uma porcentagem acertada em contrato e sendo excluída de participar das receitas de exploração comercial do título", revela Marina.
"Queremos que a produtora brasileira não seja uma mera prestadora de serviços, como é hoje. Quando uma plataforma faz uma série, a produtora entrega 100% dos direitos, tanto da propriedade intelectual quanto da exploração comercial."
Para Conde, é preciso também resolver a questão da visibilidade das produções nacionais dentro das plataformas.
"Ainda é difícil furar a bolha do algoritmo, embora mais e mais as produções nacionais se encontrem entre os destaques."
Mas ela acredita que a figura muda um pouco quando se fala de seriados.
"Existe por parte do público uma comparação um pouco irreal com as produções norte-americanas, feitas sempre com um orçamento muito mais dilatado e confortável. É engraçado, as séries americanas ganham o status de mainstream, e as nacionais acabam sendo vistas como alternativas, cult. Mas isso também vem mudando, e quanto maior o engajamento do público, mais as plataformas investem."
E o assinante?
Após um ano de Mário Frias à frente da Secretaria Especial de Cultura, e com o impasse da regulamentação se arrastando desde 2018, hoje o setor audiovisual vive uma situação delicada que, de acordo com Rodrigues, só se agravou com a pandemia.
"Sem a regulamentação do streaming no país, esse cenário de caos econômico pouco muda, uma vez que as plataformas vão recorrer a grandes produtoras."
E se, por acaso, existe um medo de que regulamentação leve a mais impostos e, consequentemente, maior cobrança para o consumidor, os estudiosos da área afirmam que isso não passa de lenda.
"Estamos falando de players que não pagam, que vão contribuir e tirar proveito disso. Eles terão obras, talvez com maior valor agregado e recursos, com verba para produzir conteúdos melhores, que serão distribuídos neles mesmos. O que as telecoms sempre disseram é que foi criada uma contribuição a mais, o que não é verdade."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.