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Os segredos das músicas da ginástica artística do Brasil na Olimpíada

Rebeca Andrade deu show ao som de 'Baile de Favela' e 'Toccata' de Bach Ricardo Bufolin/CBG

De Splash, no Rio

28/07/2021 04h00

A ideia de misturar música clássica com funk na Olimpíada de Tóquio surpreendeu até quem já estava acostumado com as ideias "fora da casinha" de Rhony Ferreira.

Ele é treinador e coreógrafo da seleção brasileira de ginástica artística há 21 anos e já "aprontou" dessas algumas outras vezes.

Quem conta é o produtor musical e maestro Misa Jr., que recebeu, ainda em 2019, mais uma "missão impossível" do parceiro de trabalho.

Quando ele falou que queria misturar Bach com o 'Baile de Favela' eu disse: 'Mano, não vai dar certo'. Mas, mais uma vez, deu. O Rhony é muito musical e criativo e sabe o que faz.
Misa Jr., produtor musical e maestro

A certeza de que a mistura foi bem feita veio no último domingo, quando Rebeca Andrade se classificou para a final do "solo" ao som do medley do funk de MC João com "Toccata and Fugue", de Johann Sebastian Bach.

A galera —em Tóquio e na internet— "pirou" com o resultado.

O meu celular 'enlouqueceu' com tanta mensagem. Aqui também, apesar de não ter torcida. O Brasil é referência no solo e todo mundo sempre espera o que a gente vai mostrar.
Rhony é treinador e coreógrafo da seleção brasileira de ginástica artística há mais de 20 anos Imagem: Reprodução/Instagram

O reconhecimento não vem à toa. A parceria de Rhony e Misa é antiga e vencedora. Junto com eles, nas produções das trilhas, sempre esteve a produtora Angela Molteni. Há mais de duas décadas, os três se reuniam em Curitiba para montar as músicas.

Angela Molteni, Misa Jr. e Rhony Ferreira criam trilhas para a ginástica há mais de 20 anos Imagem: Acervo pessoal/Misa Jr.

Uma das primeiras criações do trio foi um marco na história da ginástica.

No Mundial de 2003, nos Estados Unidos, e na Olimpíada de Atenas, em 2004, Daiane dos Santos encantou o mundo ao se apresentar com uma versão de "Brasileirinho", de Waldir Azevedo.

E foi deles a ideia de, pela primeira vez, incluir outros ritmos —no caso, o samba— nas músicas de um esporte que é muito rígido com as tradições. Na ginástica, a música clássica sempre foi a mais usada, difundida por potências do esporte, como Rússia e Romênia.

Rhony Ferreira é o responsável pelas coreografias do solo desde 'Brasileirinho', de Daiane dos Santos Imagem: Reprodução/Instagram

"Ninguém fazia, porque a música clássica é um elemento muito forte da cultura da ginástica", conta Rhony, que encontrou no samba uma maneira de valorizar os pontos fortes e "esconder" os fracos de Daiane.

O treinador explica que, na ginástica, três critérios são avaliados: a execução das acrobacias, a dificuldade delas e a coerência da dança. Se a ginasta se propõe, por exemplo, a usar música clássica, ela deve fazer passos de balé clássico.

Daiane não sabia dançar balé, mas tinha samba no pé.

Daiane dos Santos foi ouro no Mundial de 2003 no solo, ao som de 'Brasileirinho' Imagem: AFP PHOTO / Robyn BECK

"Ela não tinha aquela perninha esticada, não sabia fazer plié e esses outros passos do balé, porque não teve essa experiência quando criança", conta o treinador, que classifica a comentarista da modalidade na Globo como "um foguetinho" ou "a Simone Biles daquela época".

"A gente teve que arrumar uma forma de não comprometer a parte artística e destacar a parte acrobática dela, que era excepcional", conta Rhony. Veio, então, a ideia de fugir das já "manjadas" trilhas de música clássica, que ainda são maioria até hoje.

"Eu não podia usar essa música. Eu pensei: 'vou pegar uma música que os árbitros não tenham condições de julgar, só de apreciar'."

Ele explica melhor a estratégia:

Um plié na China é igual ao da Rússia, do Brasil, do mundo todo. O árbitro já conhece. Mas, vem cá, qual é o árbitro internacional que vai dizer que o samba está errado? Não tem!
Rhony Ferreira

Depois de "Brasileirinho", Rhony e a seleção brasileira viraram referência de inovação no assunto. Até que chegou a hora de escolher a música de Rebeca Andrade para a Olimpíada de Tóquio.

'Bach' de favela

O parceiro Misa não compete, mas também precisou treinar muito para conseguir encaixar "Baile de Favela" e Bach em uma coisa só. "Tive que estudar piano clássico, que não tocava há muito tempo", conta o produtor, que gravou todos os instrumentos da música.

E ainda tem todo um trabalho de sincronismo com a performance da atleta.

"A música é feita de acordo com a performance, e não o contrário", explica Rhony, que muitas vezes retornou ao maestro para pedir ajustes.

Misa Jr. produz trilhas para a seleção brasileira de ginástica artística há mais de 20 anos Imagem: Acervo pessoal/Misa Jr.

Algumas vezes ele falava: 'Misa, nessa parte a gente precisa de mais um segundo para ela respirar'. E um segundo na música não é tão simples assim!

Desde que ouviu "Baile de Favela" na arena da ginástica na Olimpíada do Rio, em 2016, Rhony "cismou" que aquela seria "uma boa" para embalar Rebeca em Tóquio.

"Eu fui perguntar ao DJ qual era o nome da música, porque me marcou muito", conta o treinador, que manteve segredo até para a própria atleta.

Eu só deixei ela saber da música depois de tudo pronto. Senão ela não ia querer, porque é bem ousado mesmo
Misa Jr.

E não foi a única surpresa

Além do "Bach de favela" de Rebeca, Rhony também ganhou elogios pela mistura surpreendente que fez para Flávia Saraiva, que também competiu no solo, mas se lesionou e não vai participar da final. Ela, no entanto, conseguiu se classificar para a decisão na trave.

Flávia Saraiva se apresentou no solo com 'medley' de clássicos da música brasileira em versão pop Imagem: Lindsey Wasson/Reuters

Apesar da eliminação no solo, Flávia também surpreendeu com um medley que deu uma cara pop a grandes clássicos da música brasileira: "Garota de Ipanema", "Aquarela do Brasil" e "Canto das Três Raças".

Outra ideia ousada de Rhony, que dessa vez procurou outro "craque" da música para encarar o desafio.

Rhony Ferreira e Flávia Saraiva, em 2016, na Olimpíada do Rio Imagem: Reprodução/Instagram

"Eu queria algo brasileiro, que destacasse essa cultura negra nossa, a força da mulher negra que a Flávia é", conta Rhony, que chegou até Rafael Castilhol, produtor de nomes como Anitta, Ludmilla e Melim, com o briefing da apresentação. Apenas.

Rafael Castilhol, produtor de Anitta e Ludmilla, fez o medley usado por Flávia Saraiva na Olimpíada de Tóquio Imagem: Acervo pessoal/Rafael Castilhol

"Ele queria destacar os clássicos com uma cara de modernidade. A Flavinha é muito nova, então a gente não pode fazer uma coisa tão tradicional", conta Castilhol, que "mergulhou" em vídeos de Flávia para pegar o jeito.

O Rhony foi me explicando: 'a partir do minuto tal, preciso quebrar a música assim. Tem coisas que se você fizer a plateia vem junto, batendo palma.
Rafael Castilhol, produtor musical

Os produtores contam que acabam se sentindo parte da equipe. E viram a noite torcendo pelas atletas e suas músicas.

"É emocionante demais. Por mais que nosso esforço seja mínimo perto do delas, é uma honra", conta o Misa, cuja filha chegou a fazer ginástica por causa do trabalho do pai.

Castilhol conta que também passou a acompanhar mais de perto o esporte. Ele lamenta a lesão da brasileira e agradeceu pela oportunidade de "estrear" em uma Olimpíada: "Foi uma experiência muito bacana, uma pena que ela machucou, porque estava arrasando. Vou torcer muito por ela na trave".

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