Os segredos das músicas da ginástica artística do Brasil na Olimpíada
A ideia de misturar música clássica com funk na Olimpíada de Tóquio surpreendeu até quem já estava acostumado com as ideias "fora da casinha" de Rhony Ferreira.
Ele é treinador e coreógrafo da seleção brasileira de ginástica artística há 21 anos e já "aprontou" dessas algumas outras vezes.
Quem conta é o produtor musical e maestro Misa Jr., que recebeu, ainda em 2019, mais uma "missão impossível" do parceiro de trabalho.
Misa Jr., produtor musical e maestro
A certeza de que a mistura foi bem feita veio no último domingo, quando Rebeca Andrade se classificou para a final do "solo" ao som do medley do funk de MC João com "Toccata and Fugue", de Johann Sebastian Bach.
A galera —em Tóquio e na internet— "pirou" com o resultado.
O reconhecimento não vem à toa. A parceria de Rhony e Misa é antiga e vencedora. Junto com eles, nas produções das trilhas, sempre esteve a produtora Angela Molteni. Há mais de duas décadas, os três se reuniam em Curitiba para montar as músicas.
Uma das primeiras criações do trio foi um marco na história da ginástica.
No Mundial de 2003, nos Estados Unidos, e na Olimpíada de Atenas, em 2004, Daiane dos Santos encantou o mundo ao se apresentar com uma versão de "Brasileirinho", de Waldir Azevedo.
O treinador explica que, na ginástica, três critérios são avaliados: a execução das acrobacias, a dificuldade delas e a coerência da dança. Se a ginasta se propõe, por exemplo, a usar música clássica, ela deve fazer passos de balé clássico.
Daiane não sabia dançar balé, mas tinha samba no pé.
"Ela não tinha aquela perninha esticada, não sabia fazer plié e esses outros passos do balé, porque não teve essa experiência quando criança", conta o treinador, que classifica a comentarista da modalidade na Globo como "um foguetinho" ou "a Simone Biles daquela época".
"A gente teve que arrumar uma forma de não comprometer a parte artística e destacar a parte acrobática dela, que era excepcional", conta Rhony. Veio, então, a ideia de fugir das já "manjadas" trilhas de música clássica, que ainda são maioria até hoje.
"Eu não podia usar essa música. Eu pensei: 'vou pegar uma música que os árbitros não tenham condições de julgar, só de apreciar'."
Ele explica melhor a estratégia:
Rhony Ferreira
Depois de "Brasileirinho", Rhony e a seleção brasileira viraram referência de inovação no assunto. Até que chegou a hora de escolher a música de Rebeca Andrade para a Olimpíada de Tóquio.
'Bach' de favela
O parceiro Misa não compete, mas também precisou treinar muito para conseguir encaixar "Baile de Favela" e Bach em uma coisa só. "Tive que estudar piano clássico, que não tocava há muito tempo", conta o produtor, que gravou todos os instrumentos da música.
E ainda tem todo um trabalho de sincronismo com a performance da atleta.
"A música é feita de acordo com a performance, e não o contrário", explica Rhony, que muitas vezes retornou ao maestro para pedir ajustes.
Algumas vezes ele falava: 'Misa, nessa parte a gente precisa de mais um segundo para ela respirar'. E um segundo na música não é tão simples assim!
Desde que ouviu "Baile de Favela" na arena da ginástica na Olimpíada do Rio, em 2016, Rhony "cismou" que aquela seria "uma boa" para embalar Rebeca em Tóquio.
"Eu fui perguntar ao DJ qual era o nome da música, porque me marcou muito", conta o treinador, que manteve segredo até para a própria atleta.
Misa Jr.
E não foi a única surpresa
Além do "Bach de favela" de Rebeca, Rhony também ganhou elogios pela mistura surpreendente que fez para Flávia Saraiva, que também competiu no solo, mas se lesionou e não vai participar da final. Ela, no entanto, conseguiu se classificar para a decisão na trave.
Apesar da eliminação no solo, Flávia também surpreendeu com um medley que deu uma cara pop a grandes clássicos da música brasileira: "Garota de Ipanema", "Aquarela do Brasil" e "Canto das Três Raças".
Outra ideia ousada de Rhony, que dessa vez procurou outro "craque" da música para encarar o desafio.
"Eu queria algo brasileiro, que destacasse essa cultura negra nossa, a força da mulher negra que a Flávia é", conta Rhony, que chegou até Rafael Castilhol, produtor de nomes como Anitta, Ludmilla e Melim, com o briefing da apresentação. Apenas.
"Ele queria destacar os clássicos com uma cara de modernidade. A Flavinha é muito nova, então a gente não pode fazer uma coisa tão tradicional", conta Castilhol, que "mergulhou" em vídeos de Flávia para pegar o jeito.
Rafael Castilhol, produtor musical
Os produtores contam que acabam se sentindo parte da equipe. E viram a noite torcendo pelas atletas e suas músicas.
"É emocionante demais. Por mais que nosso esforço seja mínimo perto do delas, é uma honra", conta o Misa, cuja filha chegou a fazer ginástica por causa do trabalho do pai.
Castilhol conta que também passou a acompanhar mais de perto o esporte. Ele lamenta a lesão da brasileira e agradeceu pela oportunidade de "estrear" em uma Olimpíada: "Foi uma experiência muito bacana, uma pena que ela machucou, porque estava arrasando. Vou torcer muito por ela na trave".
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