Mãe de santo, curou presidente... Quem é a misteriosa matriarca do samba?
O samba no Rio de Janeiro tem raiz em uma baiana de Santo Amaro da Purificação: Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata (1854 - 1924). Pesquisadoras apontam que, apesar de ser um ícone, a matriarca do samba ainda tem sua trajetória envolva em especulações, sobretudo pela falta, má interpretação ou desencontro de informações, que camuflam a multiplicidade de suas ações.
Mais famosa das "tias pretas" do samba no início do século 20, Ciata foi produtora, empreendedora e articuladora política da cultura em um período em que o samba era criminalizado pelas autoridades políticas e de segurança pública.
Quem foi Ciata?
Ciata saiu da Bahia aos 22 anos e foi morar na Praça Onze, Centro do Rio, conhecida pelo nome de "Pequena África". Logo, seu quintal virou cenário de encontros com sambistas, tanto que abrigou a primeira gravação em disco de um samba - a canção chamada "Pelo Telefone", composta por Donga e Mauro de Almeida. Além disso, era palco articulações e estratégias de manutenção da cultura negra, bem como de reuniões religiosas, já que ela era iniciada no Candomblé..
Hoje, a Casa da Tia Ciata é sede da Organização dos Remanescentes da Tia Ciata (ORTC). Também um espaço cultural, foi um dos locais visitados pela a cantora e atriz Eliana Pittman durante as gravações da série Preto à Porter, dirigida por Rodrigo Pitta em parceria com MOV, a produtora de vídeos do UOL.
A cura do presidente
Tia Ciata era Iyá Kékeré (mãe pequena) no terreiro do babalorixá João Alabá de Omolu, um dos principais do Rio de Janeiro, localizado na rua Barão de São Félix, na Zona Portuária. Com isso, conseguiu associar sua atuação religiosa à política. As orientações religiosas a Venceslau Brás, presidente do Brasil entre 1914 e 1918, por exemplo, abriram alguns caminhos para ela.
Consagrada ao orixá Oxum e rezadeira, ela foi procurada por Brás para curar uma ferida. A recomendação para que tomasse banho de ervas surtiu efeito. Curado, o presidente lhe assegurou qualquer pedido como forma de agradecimento. Além de um emprego ao marido, Ciata passou a ter próxima de algumas autoridades políticas. Isso permitiu a ela realizar as festas em seu quintal, apesar de o samba ser criminalizado na época.
O matriarcado do samba
A trajetória de Tia Ciata influenciou carreiras de dezenas de mulheres negras no samba, como Clementina de Jesus, Elza Soares, Jovelina Pérola Negra, Tia Surica, Dona Eunice, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Mariene de Castro e Teresa Cristina.
Muito desse legado também é observado nas feijoadas e festas realizadas nas escolas de samba, em sua maioria organizadas pelas "tias" das agremiações.
A jornalista Claudia Alexandre, mestre em Ciência da Religião e pesquisadora de sambas e tradições de matrizes africanas, enfatiza que a reconstrução da história de Tia Ciata e de outras mulheres negras como Tia Amélia do Aragão, Tia Perciliana de Iansã e Tia Carmem do Xibuca é um caminho fundamental para entender a identidade nacional.
Essas memórias estão vivas na atuação das mulheres dos terreiros dos sambas e na atitude das que escreveram sua história nos movimentos culturais pelo reconhecimento das tradições de matrizes africanas
Claudia Alexandre, jornalista e pesquisadora
A jornalista afirma que, embora Ciata seja eternizada na figura das integrantes das Alas das Baianas, sua história precisa ser mais revisitada a partir da perspectiva feminina e negra para contrapor narrativas de que sua atuação se resumia a funções domésticas.
Manutenção do legado
Ainda hoje, por falta de dados ou pesquisas, é difícil traçar uma linha cronológica da vida de Ciata. Alguns estudiosos, por exemplo, dizem que, além de entusiasta do samba, ela cantava e tocava algumas músicas. No entanto, não há registros específicos destes momentos.
"Boa parte da revisão da história da musicalidade negra e das disputas culturais dos séculos 19 e 20 deve considerar a história de Ciata, que ainda merece ser aprofundada. Só assim, explicaremos como o nome dessa mulher ganhou centralidade em sua época e é lembrado até os dias de hoje", explica Claudia Alexandre.
A professora Angélica Ferrarez, pesquisadora e doutora em História Política, estudou as contribuições culturais das mulheres negras no pós-abolição e identifica que as referências sobre Tia Ciata são romantizadas. Segundo ela, a sambista costuma ser vista como uma grande mãe.
Eu gosto muito de elaborar imagens de Tia Ciata como uma mulher empreendedora, não no sentido capitalista do termo, mas que buscou qualidade de vida, melhorias materiais, ascensão social para si e para toda a comunidade negra do seu entorno
Angélica Ferrarez, professora e pesquisadora
A jornalista Claudia Alexandre compartilha deste pensamento. Para ela, há um paralelo entre o perfil pessoal de Ciata e a personalidade ativa e estratégica que ela se tornou ao longo do tempo.
"Suas lições de resistência e existência, numa sociedade dominante e patriarcal não podem ser reduzidas a uma cozinheira ou dona de um casarão onde homens, intelectuais e artistas se reuniam para rodas de samba. Ela era muito mais do que isso. Suas habilidades (cozinheira, sambadeira, tocadora, costureira, bordadeira, quituteira, macumbeira, festeira), nos colocam diante da história de uma mulher que negociou contra as opressões, inclusive politicamente", afirma.
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