Por que a série 'Round 6' está ferindo o orgulho de parte da Coreia do Sul
"Round 6", série que estreou em 17 de setembro na Netflix, já pode ser considerada um fenômeno. Batizada de "Squid Game" (em português, "Jogo da Lula") no título original, a produção sul-coreana atingiu o primeiro lugar entre as mais vistas em 90 países da plataforma. Só que o sucesso é ao mesmo tempo um orgulho e um problema para a Coreia do Sul.
A explicação está na premissa de "Round 6". Na série, pessoas que estão com dívidas altíssimas e "impagáveis" são convidadas para um jogo arriscado em que o prêmio final é uma quantia astronômica de dinheiro.
Saindo da ficção, os problemas financeiros são uma realidade de boa parte da população no país asiático e, diferentemente da indústria do entretenimento, não orgulham nem um pouco os sul-coreanos.
É o que explica CedarBough Saeji, professor assistente de estudos coreanos e do leste asiático na Universidade Nacional de Pusan, em Busan, em uma entrevista à NBC News.
"Há essa dissonância entre o orgulho sul-coreano de que esta série nacional está dominando a Netflix em todo o mundo e o desconforto com o que o programa parece expor sobre a Coreia do Sul. Eles adoram ser o número 1, mas seu número 1 ao custo de mostrar seus problemas é um pouco diferente."
O fato de a Coreia do Sul também ter produzido "Parasita", o vencedor do Oscar de melhor filme em 2020, que também focou em temas de desigualdade, provavelmente acentuou esse desconforto, continua Saeji.
Ainda assim, "Round 6" é extremamente popular em seu país de origem. Nas ruas, vendedores de "dalgona", o biscoitinho doce que aparece em um dos jogos da série, conta que as vendas aumentaram bastante. Mas a bonança não é a realidade de boa parte da sociedade, como a própria série mostra.
Sociedade competitiva
Park Sae-ha, estudante do último ano do curso de economia na Universidade Yonsei em Seul, disse à NBC News que a série é "viciante por ser tão explícita e direta". E disse se identificar com alguns personagens: "Embora eu seja jovem, posso facilmente me relacionar com a dura realidade de uma sociedade muito competitiva."
Essa intensa competitividade pode ser uma das razões pelas quais a Coreia do Sul teve tanto sucesso, com um período de rápida industrialização começando na década de 1960 que a transformou na décima maior economia do mundo.
Mas, como em muitos outros países, um diploma universitário e um bom emprego não garantem a segurança financeira de antes. Com uma renda média de cerca de US$ 42 mil (cerca de R$ 230 mil) por ano, muitos coreanos agora descobrem que precisam pedir dinheiro emprestado para manter o estilo de vida.
Alimentada por baixas taxas de juros, a dívida das famílias na Coreia do Sul cresceu significativamente nos últimos anos e agora é igual ao PIB anual do país. (nos EUA, em comparação, a dívida das famílias é de cerca de 80% do PIB). As pessoas podem acumular dívidas por causa de gastos com cartão de crédito, desemprego ou perdas, mas grande parte delas está vinculada ao setor imobiliário.
Os preços das moradias têm subido rapidamente, especialmente sob o comando do presidente Moon Jae-in. O preço médio de um apartamento na capital do país, Seul, está próximo de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,5 milhões).
As restrições aos empréstimos e os esforços para esfriar o mercado imobiliário pouco adiantaram para diminuir os empréstimos às famílias. Além de habitação, alguns coreanos, especialmente os mais jovens, pedem dinheiro emprestado para investir em criptomoeda.
Dívidas e mais dívidas
Muitos coreanos começam pegando empréstimos de instituições financeiras legítimas, como bancos, explica Koo Se-Woong, um especialista em cultura coreana que vive na Alemanha. Quando esse caminho se esgota, eles podem passar para credores de segunda linha, que cobram juros mais altos.
No pior dos cenários, os endividados recorrem a operações de agiotagem que podem cobrar taxas de juros de três dígitos, "e então você é empurrado para situações das quais realmente não pode sair". De acordo com algumas estimativas, há 400 mil coreanos em dívida com agiotas.
"Quando você olha para os personagens da série que estão participando deste jogo, eles representam aquele grupo demográfico dos coreanos que estão na pior situação possível por causa de suas dívidas pessoais", relaciona Koo.
Em um recente post que viralizou no Facebook, Koo disse que ficou chocado quando um amigo contou que ele vivia de salário em salário, apesar de ter um bom emprego.
O amigo parecia um trabalhador comum e bem-sucedido, disse Koo, mas lutava para pagar as armadilhas da vida de classe média: um apartamento, um carro e viagens ocasionais com sua esposa e filhos. "Tudo é pago com empréstimos", revelou o amigo. "Simplesmente não temos dinheiro."
"Eu sinto a dor que a nossa sociedade está passando"
Para Margie Kim, uma dona de casa em Seul que está assistindo "Round 6" com a família, o sucesso da série se justifica pela intensidade de cores, referências e elementos visuais influenciados pela pop-art, mas principalmente, pelas mensagens sociais que o enredo traz.
"Eu sinto a dor do que nossa sociedade está passando", diz Margie. A série lida com tantas questões urgentes como desigualdade de renda, desemprego e uma sociedade que envelhece rapidamente - que é algo com que toda a sua família pode se relacionar e falar sobre.
"Tantas pessoas comuns de classe média vivem com tantas dívidas que eu poderia ter empatia total com as pessoas que entraram no jogo", finaliza a cidadã sul-coreana.
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