'O Último Duelo' faz filme '3 em 1' para contar versões de um crime
De Splash, em São Paulo
14/10/2021 04h00
Em "O Último Duelo", o renomado diretor Ridley Scott conta uma história verídica que aconteceu na França, por volta do ano de 1386, no último julgamento por combate reconhecido por Lei. A história, porém, soa mais atual do que isso, e por vários motivos.
Idealizado por Ben Affleck e Matt Damon a partir do livro de Eric Jager (2004), o filme, nos cinemas a partir de hoje, é centrado na personagem de Jodie Comer, Marguerite de Carrouges, que afirma ter sido estuprada por Jaques Le Gris (Adam Driver), amigo de seu marido, Jean de Carrouges (Damon).
A partir desta premissa, o filme opta por uma estrutura que, coincidentemente, se assemelha à dos filmes "O Menino que Matou meus Pais" e "A Menina que Matou os Pais", de Maurício Eça, sobre o Caso Richthofen. Em 2h30 de projeção, o drama se divide em três capítulos. Cada um sob um ponto de vista.
Quando bem aproveitada, a estrutura é sagaz e confronta versões de um mesmo fato em detalhes como posicionamento dos personagens, tons de voz e olhares que dizem coisas diferentes, dependendo de quem os interpreta.
Em cada um dos capítulos, vimos a história avançar um pouco mais, com cenas e encontros não vistos nos anteriores. Isso ajuda a dar velocidade para a trama e anula a possível sensação de estarmos assistindo aos mesmos fatos se desenrolarem três vezes.
Sem ambiguidades
Objetivo, o filme usa a estrutura em três capítulos para ilustrar o que veio antes do abuso e o contexto das relações entre os protagonistas. É importante frisar: ele jamais faz isso para questionar a voz da mulher.
Neste sentido, o roteiro de Affleck, Damon e Nicole Holofcener usa com sabedoria o que cada um daqueles personagens vê. É um texto que faz muito bem uma distinção essencial entre o que é opinião e o que é distorção da realidade.
Por isso, uma cena em específico, central para a trama, existe duas vezes no filme, cada uma sob uma perspectiva diferente. Nas versões, o público pode notar diferenças sutis, determinadas pelo roteiro e pela direção. Holofcener explica:
"Na primeira, Marguerite parece estar a favor da situação. Ela resiste, mas não com tanta força. A câmera está na maior parte do tempo atrás dela, não vimos seu rosto assustado. As diferenças são sutis, como devem ser mas, no fim, vimos claramente que ela foi estuprada. E essa é a verdade."
Jodie Comer completa:
"As cenas estavam no fim da nossa agenda, tivemos uma pausa de seis meses por causa da covid. Tive muito tempo para pensar. Na noite anterior, Adam e eu fomos até o estúdio e marcamos todos os nossos movimentos. Nos damos muito bem, há muita confiança e respeito."
Cara de épico
Evocando outros dramas históricos de Scott, como "Gladiador" (2000) e "Cruzada" (2005), "O Último Duelo" se assemelha pelas ambientações ricas e precisas. A diferença está na figura feminina como peça central e complexa —um desafio que, entregue a Comer, é cumprido com louvor.
"Muita coisa dependia do fato de fazermos as cenas corretamente". conta. "Era importante que nada no filme fosse gratuito, que as cenas contassem uma história, acima de tudo. Eu realmente me senti segura, tivemos uma coordenadora de intimidade, Ita O'Brien, que fez um trabalho fenomenal."
Estrutura funcional
Se a dupla de filmes sobre o Caso Richthofen utiliza as versões contadas no julgamento para ilustrar as contradições entre o que os acusados alegam (e se isentar), em "O Último Duelo", a função é outra.
O filme evoca a tradição dos relatos orais, como podem sofrer alterações ao longo do tempo, e ser enxergados de formas diferentes dependendo de quem os conta. Mesmo assim, no fim da história, alguns pontos seguem incontestados pelo roteiro, ainda que contestados por alguns dos personagens.
Por isso, a construção do roteiro foi dividida, para que essa distinção ficasse mais clara. Ao mesmo tempo, era importante que o trabalho em conjunto fosse preservado.
"O roteiro é uma colaboração em partes iguais", explica Nicole. " [Affleck e Damon] escreveram a maior parte dos dois primeiros capítulos, e tem uma mãozinha minha lá. Eu fiz a maior parte do terceiro capítulo, e eles contribuíram. Precisava ser uma única história."
Neste sentido, a divisão em capítulos cumpre uma função máxima: pontuar por que a acusação de Marguerite é contestada, quais artifícios são usados para questioná-la e como, trazidos para a realidade do século 21, dialogam com pautas feministas que estão em voga.
Jodie explica:
"Quando falamos de assuntos tão delicados, ou sobre a experiência feminina, um homem nunca entenderia completamente as nuances envolvidas. Por isso, foi integral que Nicole estivesse lá. Não poderíamos fazer jus à história de Marguerite se não houvesse uma mulher conduzindo o roteiro."