Amor entre Erika Hilton e Gabriel Lodi, um homem trans, superou traumas
Colaboração para Splash, em São Paulo
25/11/2021 04h00
Durante toda a vida, Erika Hilton, 28, acumulou traumas e decepções em seus relacionamentos amorosos. Mulher trans, negra, a ativista passou por muitos episódios violentos e de sofrimento emocional, e se sentia fechada para o amor. Na política, encontrou um caminho para sua luta e se tornou a vereadora mais bem votada do país, pela cidade de São Paulo. Estava nesse momento de auto realização e de curtição —mas, mesmo sem querer, encontrou o amor assim que viu Gabriel Lodi, 34, homem trans, ator e dublador.
Para que pudessem ficar juntos, foi preciso que Erika superasse os medos e traumas, se abrindo para essa nova forma amor, coisa que Gabriel conseguiu com disposição, empatia e cumplicidade. Juntos, criaram uma relação diferente da lógica dos relacionamentos passados dos dois e dos moldes impostos pela sociedade. Com interpretação de Aretha Sadick, atriz e performer, a história de Erika e Gabriel é contada no quinto episódio do podcast "Existe Amor", de Splash.
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Você pode escutar o quinto episódio acima ou ler o roteiro na íntegra, abaixo.
O podcast Existe Amor está disponível no UOL, em tocadores de áudio como Spotify, Apple Podcast, Google Podcast e Amazon Music e também no YouTube.
Existe amor depois da dor
"Sim, acho que dá para dizer que foi amor à primeira vista.
[Pausa, pensa]
Olha, vou ser bem sincera! Não vou falar que foi amor à primeira vista não, porque à primeira vista eu só queria cachorrada mesmo! Não vou mentir!
O ano era 2018, e eu estava na 2ª Caminhada do Orgulho Trans, aqui em São Paulo. Eu vi o Gabriel lá, que é um homem trans. Mas não conhecia ele, então acabou que eu não me aproximei nem fiz nada naquele momento.
Eu não estava na marcha procurando romance nem amor! Não estava procurando nada, na verdade. Estava livre na minha vida, fervendo, arrasando, brilhando! E, de repente, vi ele e falei: 'Ah que menino interessante, bonito, gostoso! Quero conversar com ele! Quero encontrar com ele!'.
Então, depois, fui procurar, caçar, querer saber quem era. Descobri e mandei uma mensagem para ele via Instagram. Nem lembro direito o que disse, mas acho que falei que queria ver ele ou ter ele [risos]. Alguma coisa nesse sentido. Aí ele me respondeu, e a gente começou a conversar pela internet.
Logo depois chegou o Carnaval e eu era mestre de cerimônia do bloco Love Fest. Aí chamei o Gabriel para ir comigo, dei uma pulseirinha para ele. Eu cheguei atrasada e encontrei com ele no trio. E aí, minha filha, daí em diante foi isso. Nunca mais a gente se separou! [risos]
Nessa época, o Gabriel namorava, e eu também, mas já estava meio que terminando. Eu não tinha anunciado ainda, no Facebook aparecia que eu namorava. Mas eu estava ficando na casa da minha mãe, já não via mais meu ex. O Gabriel também estava saindo de um relacionamento. Então, terminei no Facebook e segui com a minha vida.
Mas nem sempre foi fácil. Eu tenho um baú de traumas. Sou uma pessoa traumatizada pelos relacionamentos que já tive na minha trajetória, por ser mulher trans, travesti. Vivi relacionamentos abusivos, violentos! Fui expulsa de casa muito cedo. Vivi da prostituição a minha adolescência inteira e na prostituição a gente tem um grande vácuo sentimental, né? As pessoas trans, travestis, se transformam em objeto sexual, uma grande coisa que não deve receber afeto!
Foram muitos traumas! Decepções, medos, abusos sexuais, emocionais, psíquicos, físicos até! Fiquei em um relacionamento, pela primeira vez, com um homem cisgênero por quase 4 anos. Depois, me relacionei com uma mulher cisgênera, que também não foi muito fácil!
Só mais tarde namorei um homem trans, e o relacionamento já foi muito melhor! De todos os relacionamentos que eu tive antes do Gabriel, esse foi o melhor, mas também tive problemas. E aí, fui achando que era melhor eu não me perder, não depender emocionalmente das pessoas.
São muitas coisas, que foram criando em mim uma casca! Não gosto dessas palavras 'morar junto', 'casar'. Tenho pavor! Achei que poderia ser diferente agora, mas, a princípio, eu não queria morar com o Gabriel.
Em 2020 eu fui dividir apartamento com uma amiga. Mas veio a pandemia e, para complicar ainda mais a situação, eu comecei a fazer campanha, porque estava disputando como vereadora em São Paulo. Essa amiga criava gatos e vivia em outro ritmo. No meio da campanha, eu meio que tive um surto psicótico, porque não estava conseguindo organizar a minha vida, o meu fluxo, as coisas, a rotina da casa. O Gabriel morava em uma quitinete na Roosevelt, nesse período e me vi muito mais na casa dele do que na minha. Acabou que eu praticamente já morava com ele, a gente só não assumia isso.
Passada a campanha, a gente percebeu que seria mais fácil viver junto. E que daria certo! A gente tem uma convivência muito saudável, muito boa. Acho que a insistência do Gabriel em dizer que seria diferente, em mostrar que ele tinha uma disposição diferente de tudo aquilo que eu já havia experimentado? Acho que isso foi o ponto-chave para eu me abrir mesmo! A casca foi perfurada!
Ele realmente me queria, queria ficar comigo, queria construir uma história e uma vida juntos. Insistiu para eu ir me desarmando e me permitindo experimentar. Naquele momento, eu já tinha um nível de maturidade pessoal e sabia que não ia abrir mão de quem sou, das minhas coisas, para estar com ninguém.
A gente já ficou até 7, 8 horas da manhã falando. Passamos madrugadas conversando com uma música no fundo. E isso é muito raro, se permitir esse grau de intimidade é incrível. E o que eu espero de um relacionamento é isso: que as coisas se encaixem! Quero que o que sou, do que gosto, o que quero fazer, que tudo isso possa se encaixar nas minhas relações! Estar mais madura e mais pronta para a vida foram os pontos-chave para eu me abrir, para experimentar esse relacionamento, que de fato é diferente de tudo o que já vivi antes.
A pandemia está sendo um período difícil para o mundo, mas, no que diz respeito à gente, tem sido uma fase muito boa, porque serviu para dar um nó nas pontas soltas do nosso relacionamento. A necessidade de estar dentro de casa, de não ver pessoas, de tudo ser restrito, fez a gente ficar ainda mais próximo, ainda mais junto. E ver o quanto a gente é bom, o quanto dá certo.
Mesmo com todos os obstáculos que todos os relacionamentos têm. A gente consegue driblar esses obstáculos e não ter um elefante branco no meio da nossa sala. Então a pandemia, na verdade, teve para nós um efeito contrário do que aconteceu com a maioria das pessoas. Claro que às vezes tenho vontade de surtar, sair gritando, abrir a janela e pular lá embaixo, mas isso tem muito mais a ver com o fato de estar trancada do que com o próprio relacionamento.
Os momentos conturbados serviram para fortalecer a relação e para a gente também tomar essa decisão. A nossa casa é a nossa casa! A gente fica junto e tudo é muito tranquilo! A gente é muito caseiro, muito quietinho. Eu já era uma figura pública, aí no final de 2020 isso explodiu para um nível estrondoso. Surgiram também questões de segurança, então a gente ficou ainda mais recluso.
Eu não gostava muito de filmes e séries. Tenho problema para ficar concentrada, né? Acho que isso tem mudado agora na pandemia. Esses momentos para desligar são importantes! O Gabriel é uma pessoa dos filmes, do visual, e trouxe isso para mim um pouco mais. A gente gosta de ver filmes. Bebe, ouve uma música, assiste a um show na TV. Isso é muito bom!
Eu tenho trabalhado muito, passo o dia sentada na frente do computador e tem sido um exercício bastante difícil. Então, a gente tem mantido essa rotina de não perder o sextar. Por mais que a gente não vá receber amigos, não vá para nenhum lugar, não vá poder fazer grandes coisas, vamos ver um filme, vamos tomar uns drinks, vamos fazer alguma coisa para mudar o ritmo da semana! Para não ficar aquela rotina de levanta, vai para o computador trabalhar, aí senta à noite e vê a novela. No final de semana a gente sempre se propõe a fazer algo diferente. Uma comida, uma bebida, uma loucura.
Olha, a gente é sagitário com ascendente em aquário, os dois. Então a gente é muito 'let it go', a gente é muito vibe positiva! Está tudo bem! E se não estiver também, vai ficar daqui a 5 minutos!
E sempre foi assim também com as questões ideológicas, nunca houve divergência. Houve, sim, muitas trocas e ensinamentos. Gabriel sempre foi muito rápido e disposto, muito sedento por informações. Então houve aprendizados e bagagens novas, o que também transforma esse encontro em algo muito mágico, porque não é só o amor, o tesão, o querer estar junto e viver um novo romance, uma nova aventura. É tudo isso, mas também todos os aprendizados de vida, todas as conexões e as trocas.
Olha, o que acho mais incrível na nossa relação é essa cumplicidade, esse respeito, essa confiança, e isso que a gente foi construindo, que é bem diferente dos moldes tradicionais das relações. A gente junto conseguiu não reproduzir uma lógica do que foram os nossos relacionamentos passados e do que são os relacionamentos de um modo geral na sociedade. Acho isso muito incrível, muito saudável, muito bom! É um exercício diário, e que a gente tem feito inclusive na pandemia, morando juntos, dentro de casa todos os dias.
Gabriel é parceiro, amigo... É chato também, mas reconhece a sua chatice, e isso é muito positivo [risos]. Ele realmente consegue compreender esse universo onde estou inserida e o quanto isso demanda de mim. E é um ponto de equilíbrio. Acho lindo, porque agrega para a vida, para a relação, para a profissão. Acho importante também esse exercício de olhar para si o tempo inteiro. Porque algumas vezes fico pensando como é para os homens se relacionar com mulheres tão expansivas, tão fortes. E quantas vezes a gente não vê isso virando guerras, disputas, situações tão negativas dentro dos relacionamentos.
No caso do Gabriel, ele sempre revisita a masculinidade dele. Acho isso potente e revolucionário! Não só para mim, para ele e para a nossa relação, mas para o mundo! Esses pontos para mim são bastante admiráveis. Sem falar que ele é um ótimo dono de casa, cozinha superbem, é cuidadoso com as minhas coisas, com as da casa. É um verdadeiro príncipe!
Quando a gente vive algo pela primeira vez, como está acontecendo agora, isso acaba fazendo com que a gente não olhe tanto para o futuro, porque está vivendo e sentindo tudo isso. O aqui e agora! Acho que a gente tem muito ainda para se permitir aproveitar e experimentar --pela primeira vez.
Mas tem duas coisas que entram nesse escopo de sonhos futuros. Uma é a compra de um apartamento. Acho que a gente precisa ter um lar, uma casa. A gente mora de aluguel. Então isso é um plano que a gente tem como casal. Porque não é sobre subjetividade, é sobre o que o casal pensa junto, né?
O segundo sonho é um baby! Às vezes penso que quero ser mãe. Isso também fica no horizonte, pode vir a acontecer, ou nunca acontecer, mas que acho que está dentro dos meus planos para a vida.
Sou uma mulher negra, travesti, vim da prostituição, tem centenas de coisas que sinto, vivo no meu dia, na minha história, que o Gabriel jamais vai viver. Mas existe um ponto, um lugar de encontro, um lugar onde a gente pode, ainda que não sinta as mesmas coisas, compreender, entender, empatizar um com o outro.
Se relacionar é complexo! A vida é complexa! Não existe uma pílula mágica que faz as pessoas se compreenderem, se darem bem. Se relacionar é complexo em qualquer universo, mas aqui, entre nós dois, há disposição, há um espaço de encontro de dores, cuidados, angústias e trajetórias que faz, sim, toda a diferença!
Talvez por tudo isso, desde a primeira vez que vi o Gabriel as coisas rapidamente foram para o campo do emocional, do sentimental. Por mais que, no início, não tenha sido amor o que senti, logo se transformou em amor.
[Pausa]
Então, repensando melhor agora, acho que pode, sim, dizer que a nossa história foi amor à primeira vista".
Ficha técnica
Interpretação: Aretha Sadick. Música de abertura: Criolo. Reportagem e roteiro: Débora Miranda. Desenho de som e montagem: João Pedro Pinheiro. Design: Carol Malavolta. Motion design: Carla Borges. Direção de arte: Gisele Pungan e René Cardillo. Coordenação: Débora Miranda e Juliana Carpanez. Gerentes de conteúdo: Antoine Morel e Alexandre Gimenez. Diretor de conteúdo UOL: Murilo Garavello. Agradecimento: Arthur Cruvinel.