Os absurdos de um amor que resistiu a um oceano de separação (sem internet)
O ano era 1964 e o Brasil enfrentava um golpe militar, quando uma jovem inglesa chegou em Belém para participar de um trabalho humanitário. Na pensão onde foi morar, um casarão antigo e tomado por ratos, viviam missionários, contrabandistas e todo o tipo de gente - cenário improvável para viver um grande amor. Mas foi justamente lá que a jornalista Jan, então com 25, conheceu Plauto, advogado gaúcho de 28 anos na época, que fugia de uma perseguição política.
No episódio 6 do podcast "Existe Amor", a atriz Neusa Borges interpreta essa história de amor que já dura 50 anos, nascida em um cenário surpreendente, em meio a um momento político conturbado, e que atravessou o oceano e o tempo. Neusa começou a carreira de atriz na Globo no início dos anos 1970 e participou de mais de 50 produções, entre novelas, séries e filmes de cinema.
Ouça o episódio na íntegra no vídeo acima
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Você pode escutar o primeiro episódio acima ou ler o roteiro na íntegra, abaixo. O programa está disponível no UOL, no Youtube, no Spotify, na Apple Podcasts, no Google Podcasts, na Amazon Music e em todas as plataformas de podcast.
Episódio 6: Existe Amor no improvável
"Assim que cheguei a Belém, fiquei hospedada em uma pensão alemã. Era um casarão antigo, colonial. Na verdade, era quase uma casa de loucos [risos]. A dona era uma senhora alemã, chamada Erna. E lá tinha todo tipo de gente: missionários do Sul, contrabandistas de uísque, geólogos da Petrobrás, pilotos de avião.
Era uma grande mistura, e todo mundo sentava junto numa mesa grande para fazer as refeições. Foi assim que conheci um jovem advogado gaúcho, charmoso e elegante, chamado Plauto. Ele era o favorito da dona da pensão, porque, como ela, tinha olhos azuis e cabelos loiros.
Um dia, me sentei ao lado dele e conversamos. Acabamos ficando amigos, mas logo eu tive que ir embora de Belém.
Começando do começo: eu sou inglesa. Cresci no pós-guerra e foi bastante difícil, com racionamento de comida e essas coisas. Morava com meus pais e meus três irmãos em uma espécie de subúrbio, no sul de Londres.
A universidade em que eu estudei exigia que os alunos aprendessem línguas estrangeiras. Aí, para ajudar com isso, fui estudar português em Portugal. Fiquei oito meses, e foi lá que eu conheci brasileiros pela primeira vez. Na minha época, os jornais quase não publicavam notícias sobre o Brasil. Para mostrar como eu sou antiga: lembro de ter lido uma coisa ou outra sobre o Jânio Quadros [risos]. Além disso, quando estava na universidade eu vi o filme "Orfeu Negro" [Marcel Camus, 1959], que teve um impacto emocional muito grande em mim.
Era isso basicamente o que eu sabia sobre o Brasil. Mas fiquei com essa ideia fixa de vir para cá e trabalhar como assistente social em favelas. Sempre tive muita vontade de trabalhar com refugiados também. Em 1964 surgiu uma oportunidade de vir. Eu estava trabalhando como assistente social lá em Londres, e me candidatei para uma vaga numa entidade chamada United Nations Association, que era uma ONG que apoiava as Nações Unidas e enviava voluntários para outros países. A vaga era para trabalhar como assistente social no Rio de Janeiro, e eu fui escolhida. Mas, pouco antes de vir para cá, a minha família passou por uma tragédia. O meu irmão mais velho, que era piloto da linha Real Britânica, morreu em um acidente de avião.
Hoje em dia eu penso que deve ter sido muito difícil para os meus pais, mas na época não falávamos sobre isso. Era setembro quando eu desembarquei no Rio pela primeira vez. Imagina que naquela época a gente ainda viajava de navio. Lembro que estava meio chovendo, não era aquele cenário tropical, com céu azul, que eu tinha imaginado. Era tudo muito novo para mim. Pessoas diferentes, língua diferente. Trabalhei em uma entidade católica e dei aulas de inglês. Então, comecei a viajar pelo país. Conheci a Amazônia —e fui até lá de barco, porque naquela época também não tinha estradas, só se viajava de barco ou de avião. Também viajei muito de Catalina, que era um hidroavião, que pousa na água.
Eu gostava dessas coisas. Era completamente diferente e, às vezes, a gente passava por momentos complicados. Barco quase virando, aviões pousando em lugares difíceis. Era precário. E havia muita pobreza. Mas o que eu também lembro é que as pessoas eram amigáveis, amáveis, hospitaleiras. Diferente de quando eu viajei para a Bolívia e o Peru, por exemplo.
Lá, eles não tinham essa atitude com estranhos, agiam com mais hostilidade. E isso eu nunca vi no Brasil, sempre senti receptividade e acolhimento das pessoas daqui. Depois que eu conheci a Amazônia, eu decidi que realmente queria ser transferida para lá. Primeiro eu pensei que poderia ser Manaus, mas não tinha nenhuma vaga. Aí, me sugeriram Belém, que tinha uma ONG parceira chamada Ação, e eu fui para lá trabalhar como assistente social.
Na segunda vez que fui a Belém, ia ficar um ano por lá. Mandei uma carta para o Plauto, o advogado do Sul que eu tinha conhecido na pensão da senhora alemã. Era janeiro de 1966 e achei que ele não estaria mais por lá. Mas estava. Voltei a morar na mesma pensão, e o Plauto também morava lá ainda. Foi quando começamos a nos conhecer melhor. Trabalhávamos durante o dia e, às vezes, saíamos à noite com o pessoal da pensão para tomar chope ou ir ao cinema. Nós dois começamos a sair mais juntos. Ele tinha um senso de humor que eu gostava, e era uma pessoa muito interessante.
A gente conversava sobre o que estava acontecendo no Brasil na época, sobre eventos políticos. E, apesar de ele nunca ter viajado para fora do Brasil, ele se interessava também pelo que estava acontecendo no resto do mundo. A gente tinha muita afinidade nos interesses culturais. Tudo isso me atraía e, claro, nós tínhamos química. Uma vez, lá em Belém, fomos a uma espécie de boate chamada "uma louca", algo assim [risos]. Foi lá o nosso primeiro beijo.
O Plauto era muito reservado sobre o seu passado, mas, na medida que a gente foi se conhecendo, eu fui descobrindo mais coisas. Antes do golpe militar, ele morava no Rio Grande do Sul e era muito ativo na cena política de lá. Tinha sido suplente de deputado de um partido brizolista. Mas aí, quando veio o golpe, começou a perseguição, e ele achou melhor sair de lá e ir para Belém, que era bem longe. Quando a gente se conheceu, tinha um caso contra ele rolando lá no Sul. Ele tinha medo de que chegassem até ele em Belém e, por isso, me pediu que guardasse o passaporte.
A gente bolou um plano de que se a polícia chegasse procurando por ele, íamos fugir num barco velho de um cara que morava lá na pensão [risos]. Só que eu perdi o passaporte do Plauto. E ficava apavorada pensando que íamos ter que fugir um dia e eu não estava com o passaporte dele. Ainda hoje acho que um rato comeu o passaporte, porque lá na pensão tinha muitos ratos. Era um casarão meio caindo aos pedaços, e lembro que os ratos comiam de tudo: livros, sapatos. Eu estava viajando muito para o interior, para visitar projetos sociais de saúde, educação e da comunidade em geral.
A entidade em que eu trabalhava tinha um grupo de técnicos: um engenheiro, um agrônomo, uma enfermeira, um técnico em cooperativas, e eu, que era a assistente social. A nossa tarefa era visitar os projetos que pediam financiamento, para avaliar e fazer um relatório. Como eu viajava muito para o interior, acabei pegando vários parasitas, e fiquei bastante doente, com anemia. Lembro que uma vez chegou um médico alemão na pensão. Ele andava sempre com uma lagartixa no ombro [risos].
Olhou para mim e disse: 'Você só tem oito anos de vida' [risos]. O Plauto ia todos os dias ao mercado procurar fígado para mim, porque eu precisava comer ferro. E ele ainda queria que eu comesse aquilo cru, era uma coisa horrível. Ele trazia a carne embrulhada numa folha de bananeira, porque naquela época também não tinha papel para embrulhar as coisas.
Uma vez eu viajei ao Rio de Janeiro para passar uns dias lá e chegou um telegrama do Plauto. Naquela época, a gente mandava telegramas com as letras e as palavras coladas, ia tudo escrito errado. Li a mensagem e estava escrito: haja dilemas. Entendi que o Plauto queria dizer que estava com problemas. E pensei que ele queria acabar com o nosso relacionamento.
Fiquei muito preocupada. Mas aí, no dia seguinte, chegou outro telegrama dele para avisar que uma pessoa chamada Hajadeu de Lemos ia chegar. Ou seja, eu tinha entendido completamente errado [risos]. Naquela época, o telefonema era muito difícil a distância. Nunca telefonei de Belém para o Rio, nunca falei com os meus pais no tempo em que eu estive aqui. Nenhuma vez. A gente só trocava cartas. Então, algumas coisas davam um pouco errado.
Como na vez em que a gente tentou noivar. Eu acho que lá na pensão o pessoal já sabia que a gente namorava, porque estávamos sempre juntos. Mas um dia a gente decidiu anunciar o nosso noivado para todo mundo, fazer uma coisa mais formal. O Plauto comprou as alianças, e eu resolvi ir ao cabeleireiro. Enquanto isso, ele foi ao mercado comprar carne. Só que deu tudo completamente errado. Meu cabelo é muito fino, e eu acho que a cabeleireira nunca tinha tratado cabelo fino. Ela penteava, escovava para tentar fazer alguma coisa, e meu cabelo ficou parecendo uma espécie de capacete em volta da minha cabeça [risos]. Ficou horrível! Aí, quando eu saí do salão, é claro que começou a chover. Isso acontece sempre que vou ao cabeleireiro [risos]. Muita chuva e ventania, e o meu cabelo ficou uma bagunça.
Lembro que cheguei na pensão e a Dona Erna estava sentada na entrada, em uma varanda grande que tinha na frente da casa. Ela olhou para mim e me perguntou: 'Meu Deus! O que você fez com o seu cabelo!' [risos]. Com isso eu já tive a certeza de que estava horrorosa. Aí o Plauto chegou e disse que vasculhou todo o mercado e não encontrou carne nenhuma. Então, a gente resolveu não anunciar o noivado, porque não era propício. Mas a gente noivou mesmo assim, sem nenhuma celebração. E passamos a usar alianças!
Eu fiquei em Belém até o fim do ano de 1966, quando meu contrato terminou. Eu teria que voltar para a Inglaterra. Mas planejamos que o Plauto ia me visitar, conhecer meus pais e, então, voltaríamos para o Brasil juntos. Antes de eu voltar pra Inglaterra, eu peguei um voo para Nova York, porque queria visitar umas amigas lá. E uma dessas amigas resolveu me dar de presente um telefonema para Belém —ligação internacional era muito difícil naquela época. Mas isso foi outro desastre [risos].
Na primeira vez, eu liguei através da operadora e não deu para ouvir nada. Depois, liguei mais algumas vezes, mas ele não estava. Só que aí o Plauto começou a ficar preocupado pensando por que eu estaria telefonando para ele? Achou que tivesse acontecido alguma coisa. E, no fim das contas, eu nunca consegui falar com ele pelo telefone [risos].
A nossa história teve muitos desencontros. Agora eu consigo contar com bom humor, porque, olhando para trás, realmente foram momentos engraçados. Mas na hora eu ficava nervosa, angustiada, preocupada. Talvez seja um pouco difícil de entender hoje em dia, porque a gente na hora liga ou manda mensagem. Mas sem esse tipo de comunicação rápida, eu não sabia o que o tinha acontecido. A gente passou por maus momentos, vamos dizer assim. Acho que qualquer casamento precisa ter um pouco de senso de humor, ou até senso de absurdo.
Felizmente a gente teve. Bom, nem sempre, porque não somos um casal modelo, tivemos nossos altos e baixos, mas conseguimos. Fato é que eu voltei para a Inglaterra em dezembro, e o Plauto chegou em maio. Ele sempre se deu bem com a minha família. Seis meses depois, nós nos casamos em uma igrejinha no interior. Nesse tempo que moramos em Londres, eu consegui um trabalho de pesquisa, o Plauto estudou inglês e trabalhou em um bar de sanduíches, como todo brasileiro que chega a Londres.
E a gente foi tocando a vida. Logo depois do casamento eu fiquei grávida. Nós morávamos em um apartamento que ficava dentro da casa de uma velha senhora e, mais uma vez, era um lugar cheio de gente particular. Em troca de um aluguel barato, a gente ajudava ela quando precisava. Quando ela caía da cama no meio da noite, por exemplo, a gente ia lá ajudar. Eu não sei por que, mas todo mundo naquela casa tinha algum problema na perna [risos]. A gente teve um tempo muito bom em Londres. E aí eu comecei a fazer algumas pautas para a BBC.
O Plauto voltou para o Brasil em maio de 1969. Resolvemos ir para São Paulo, e não para Belém, por isso ele veio primeiro. Eu iria logo depois, só que eu não consegui passagem. Só consegui vaga em um navio que saía da Inglaterra no fim de setembro. Só cheguei aqui no dia 16 de outubro. Eu vim de navio porque também dava para trazer todos os nossos móveis de Londres: berço, carrinho, TV, tudo o que a gente tinha. E, bom, a nossa chegada também foi um desastre! [risos] Depois de duas semanas de viagem, eu e o Camilo —nosso filho, que ainda era um bebê— chegamos a Santos. Estava chovendo, uma garoa horrível. Tinha um monte de gente no porto, e eu procurei para ver se achava o Plauto. Nada, ele não estava lá.
Descemos tudo do navio, o Camilo no carrinho dele, e nada do Plauto. Aí eu atravessei toda a área de paralelepípedo do armazém e não sabia o que fazer. Não tinha nem moeda brasileira para telefonar. Até que eu consegui trocar algum dinheiro e estava tentando ligar em um orelhão quando finalmente o Plauto chegou. E ele estava na maior folga, almoçando com um amigo que trabalhava no porto e que tinha dito que o meu navio não tinha chegado ainda, e que só ia chegar em uma hora [risos].
Eu e o Camilo fomos de Santos até São Paulo de carro com um casal de amigos do Plauto. E ele foi em uma pick-up, levando os móveis. O casal deixou a gente no apartamento que ele tinha alugado, mas que não tinha nem móveis, nem comida, nem nada. Tinha só uma cama. Eu pensei que o Plauto fosse chegar logo depois de mim. Mas passou uma hora, duas horas? O tempo foi passando. 6 horas da noite, 7, 8, 9, 10? Deu meia-noite, e eu comecei a achar que estava viúva [risos]. Não tinha telefone, né? Nem fixo, nem celular, nem nada. Pensei que podia ter acontecido algum acidente.
Eu não conseguia dormir. Aí deu 2, 3, 4 horas, e começou a cair um temporal, com raios, trovoadas e tal. Até que ouvi alguém gritando lá fora. No apartamento tinha uma sacada pequena, eu fui olhar e era o Plauto, que finalmente tinha chegado. A pick-up tinha quebrado no meio do caminho, o pneu furou. Todas as coisas estavam molhadas, ele estava ensopado, mas felizmente estava vivo [risos]. E assim foi a minha volta para o Brasil. Aos trancos e barrancos, estamos aqui casados há 50 anos, com três filhos: o Camilo, que nasceu em Londres, a Alexandra e a Bruna, que nasceram aqui em São Paulo. E, também, temos três netos.
Durante todo este tempo, fomos nos adaptando. E acho que estamos muito bem. Sempre demos espaço um ao outro, não nos sentimos obrigados a fazer tudo juntos. A gente tem uma afinidade de interesses, que é muito importante. Mas, ao mesmo tempo, também é essencial ter interesses que não são do casal, que sejam individuais. Olhar um pouco para fora do casamento, não só para dentro. O que nos ajudou, no fim, sempre foi o senso de humor. Acho que qualquer casamento precisa ter um certo senso de humor. Ou até mesmo um senso de absurdo. Isso ajuda muito também. Afinal de contas, a vida é absurda".
Interpretação: Neusa Borges. Música de abertura: Criolo. Reportagem: Débora Miranda. Roteiro: Claudia Martins. Desenho de som e montagem: João Pedro Pinheiro. Design: Carol Malavolta. Motion design: Carla Borges. Direção de arte: Gisele Pungan e René Cardillo. Coordenação: Débora Miranda e Juliana Carpanez. Gerentes de conteúdo: Antoine Morel e Alexandre Gimenez. Diretor de conteúdo UOL: Murilo Garavello. Agradecimento: Arthur Cruvinel.
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