Papa Francisco: autor de documentário conta bastidores e como abordou abuso
Judeu e abertamente gay, o documentarista Evgeny Afineevsky é conhecido por seus trabalhos de cunho político-social. Ele já foi indicado ao Oscar pelo potente "Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom", da Netflix, e gosta de dar visibilidade a causas importantes com seus filmes.
Mas, em seu lançamento mais recente, ele preferiu um pouco mais de calma e escolheu um tema para dar esperança à população. Por isso, foi trás da autoridade máxima da Igreja Católica: o Papa Francisco.
Em "Francesco", já disponível no Discovery+, Evgeny olha para a rotina do Papa e mostra seu envolvimento com causas sociais e ambientais. Além disso, ele viaja para vários países da Europa e até para a Argentina. A ideia é mostrar como a vida de Jorge Mario Bergoglio como Cardeal e até seu envolvimento político influenciam em sua gestão como pontífice.
"Meus dois documentários anteriores estão no espectro político, sim, mas também estão no espectro humano", explica Evgeny a Splash, em conversa por vídeo.
"Em ambos, eu trouxe vozes inocentes às telas, na Ucrânia ou na Síria. Eu não os considero necessariamente políticos, acho que estava levantando vozes."
E, naqueles casos, eu me encontrei traumatizado. Foi uma jornada rumo aos lados mais obscuros da humanidade, presenciando atrocidades inimagináveis. E acho que percebi que queria trazer esperança, vida e alegria de volta.
Foi justamente por isso que o cineasta buscou seu novo personagem no Vaticano. Ainda que a mudança temática seja, a princípio, radical, ele enxerga uma continuidade clara entre os seus filmes.
"Ainda faço através das vozes das pessoas ao redor do globo, pessoas com histórias diferentes. Uso a mesma estrutura. Fui até o Papa Francisco porque ele se importa com todos esses tópicos, e as ações dele tentam fazer a diferença. Podemos não vê-lo com tanta frequência no documentário, mas ouvimos as vozes das pessoas que foram transformadas por ele."
Trabalho duro
No documentário, Evgeny entrevista o Papa e faz revelações sobre a rotina simples e a proximidade que ele mantém com as pessoas que circulam em seu meio. No entanto, conseguir ter acesso a isso não foi fácil.
"Em 2017, eu estava lançando "Cries from Syria" e estava tentando encontrar minha próxima direção, ainda sentindo os efeitos psicológicos da Síria em mim", relata. "Ao mesmo tempo, observei como meus filmes podem ser um chamado para a ação. Alguém me sugeriu fazer uma pesquisa ao redor do Papa Francisco, porque ele estava envolvido em quase todos os assuntos com os quais eu me preocupo."
Foi a partir de então que Evgeny resolveu partir para a ação.
"No início de 2018, fui até o Vaticano e comecei o processo. Eles disseram que conheciam meu trabalho, que eu poderia fazer o filme, mas não teria acesso ao Papa. Poderia falar com as equipes, ver a rotina, mas nada de conexão com o Papa. Ao longo dos anos, construí a minha relação apesar dos obstáculos criados pelo Vaticano. Não é fácil, mas eu consegui, e tenho orgulho disso."
Para conseguir esse acesso, o documentarista conta que o processo foi lento, e árduo.
"Fui até a Argentina em 2018, e já estava lá conhecendo a família dele, amigos e pessoas próximas. Estava aprendendo sobre quem ele era, enquanto pessoa e padre. Isso me ajudou a construir o personagem na minha visão, mas também a aproximar a minha relação com ele e com o Vaticano", conta. "Não podemos chegar até o personagem sem conhecê-lo, e foi isso que me possibilitou chegar até ele conhecendo tanto o seu passado quanto seu presente."
Nada de super-heróis
Apesar da figura grandiosa do pontífice, o documentarista conta que, ao conhecê-lo pessoalmente, viu a exata figura que esperava.
Muitas vezes imaginamos uma pessoa superelevada, um Super-Homem. E Jorge Mario Bergoglio não é nada disso, ele não se considera superior ou nada do tipo.
"Em uma das nossas conversas, ele me disse: 'Evgeny, eu sou o Papa, mas antes disso, sou um padre e estou aqui para servir às pessoas. Estou aqui para proteger cada ser humano e cada vida, não importa a cor da pele, a crença ou a orientação sexual'. Foi a mesma coisa quando eu insisti que ele estivesse no filme. Ele ficou reticente, dizia que não era ator e preferia estar nas ruas ou em algum lugar no fim do mundo ajudando as pessoas."
Escândalos e abuso
Um dos temas mais sensíveis do documentário é o histórico de abuso e pedofilia dentro da Igreja Católica. Os escândalos que remontam a décadas e passaram anos sendo acobertados por autoridades religiosas não são ignorados no material. Pelo contrário, são um tema importante para Evgeny.
"O abuso sexual estava literalmente à minha frente, e eu aplaudo o incrível Juan Carlos Cruz, que luta até hoje e lutou desde o início pelas vítimas. Para mim, ele é a voz de milhões de sobreviventes", desabafa.
"Todas as vezes em que assisto ao segmento dele, caio em lágrimas. Eu vivi tudo isso de dentro para fora porque as coisas estavam acontecendo em frente aos meus olhos, de 2018 até hoje."
Pude capturar exatamente o que estava acontecendo, quase em tempo real. Contar essa história de como os sobreviventes lutam por suas vozes e por transformação na Igreja foi muito importante para mim.
Por isso, ele acredita no poder de cura do seu próprio documentário.
"Tínhamos outro sobrevivente no filme, do Chile, mas ele não conseguiu estar em frente à câmera", conta. "Porém, ele contribuiu tocando violino, gravando toda a trilha do filme com seu instrumento. Foi um processo de cura para ele. Ele estava tão transformado depois das gravações porque era a dor dele expressa ali. Tudo isso foi muito especial para mim."
O lado humano
Ainda que o documentário passe por temas sensíveis, como os escândalos sexuais, a ideia de esperança segue ligada ao material do início ao fim.
"Acho que o documentário dá a outros sobreviventes a chance de presenciarem esse momento na História e também enxergarem esperança e perderem o medo de buscar ajuda."
"Como cineasta, eu tento ser objetivo. Estou falando ao mesmo tempo com pessoas completamente diferentes, então sempre tento navegar na direção oposta, para a minha objetividade não ser usada ou manipulada."
É tal objetividade que o permite enxergar que, apesar de tudo, a figura do Papa ainda pode ser um tanto contraditória.
"Você se lembra que ele literalmente cita Oscar Wilde? 'Todo santo tem um passado, todo pecador tem um futuro.' E isso é incomum para um Papa, citar Oscar Wilde. Mas é ele. É ele, e ele ama essa citação, e é o que eu tento mostrar. Ele não é perfeito, mas não tem medo de mostrar suas falhas."
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