Jornalista da Globo explica por que não conseguiu cobrir guerra na Rússia
Marcelo Courrege tem a Rússia como parte importante da sua história. O jornalista da Globo viveu durante quase um ano e meio no país — que agora está em guerra com a Ucrânia — antes e durante a cobertura da última Copa do Mundo, entre maio de 2017 e setembro de 2018. Quando o conflito eclodiu, em fevereiro de 2022, mais rapidamente do que o previsto, ele não teve dúvidas: se ofereceu para fazer a cobertura no país que o abrigou quatro anos atrás.
"Quando o conflito começou, eu estava cobrindo o torneio internacional da França de futebol feminino para o SporTV. Falei com o chefe do escritório da Globo em Londres e me coloquei à disposição para cobrir. A chefia do Esporte imediatamente me liberou para fazer parte desta cobertura. Foi algo muito natural", explica Courrege, que atualmente é correspondente em Paris.
A ida para a Rússia já em guerra, no entanto, pararia em um obstáculo. "Para trabalhar como jornalista na Rússia, precisa-se de um visto específico que requer uma série de aprovações do governo russo. Esse visto foi pedido, mas não houve resposta." A Globo chegou a anunciar em um comunicado que o jornalista viajaria de Paris a Moscou.
Além da falta do visto específico de trabalho, outras condições impediram o trabalho de Courrege em Moscou, embora o correspondente tenha feito entradas ao vivo de Paris e atuado na cobertura diretamente da Europa. "O espaço aéreo russo está fechado para boa parte da Europa, e as condições de trabalho estão ficando mais difíceis. Não faz sentido ir para a Rússia para trabalhar sob tantas restrições."
"É uma catástrofe humanitária"
Marcelo Courrege fala seis idiomas, entre eles o russo, e entende um pouco do ucraniano. O jornalista também estudou a história da Rússia. Além disso, já tinha vivido sob a tensão dos dois países, que se intensificou com a anexação da Crimeia em 2014.
"Já não existia, por exemplo, voo direto entre Moscou e Kiev. Para ir à Ucrânia era muito difícil. Para fazer a cobertura da final da Liga dos Campeões da Europa, em 2018, precisei ficar muito tempo esperando pela liberação do visto de jornalista pela Embaixada da Ucrânia em Moscou. Foi um processo longo", relembra.
Ainda assim, um conflito na intensidade do que tem sido visto nas últimas duas semanas é algo que o surpreende. "A Rússia tem feito agressões em um nível que não pensei que fôssemos ver no século 21. É muito triste o que está acontecendo. É uma catástrofe humanitária."
'Russofobia'
Em uma entrada ao vivo no "Mais Você" na semana passada, Courrege explicou o termo russofobia. O preconceito do Ocidente contra os russos é histórico, mas, segundo o jornalista, tem sido usado pelo governo para justificar o conflito.
"O termo russofobia sempre existiu, e o governo o usa com muita frequência para tentar angariar apoio da população nesses conflitos internacionais. O que está acontecendo agora, com a limitação de acesso às imagens do que tem acontecido na Ucrânia, é que o governo diz que as sanções econômicas do ocidente se dão por causa da russofobia."
As manifestações contra a guerra estão acontecendo até mesmo na Rússia, e o governo tem insistido no discurso para angariar mais apoio da própria população. "É uma conexão fácil para fazer com que as críticas ao governo dentro do país cessem ou diminuam."
Para Courrege, é necessário enxergar o conflito sob diversas óticas e não culpar a população. "É importante que o mundo não enxergue a Rússia como um bloco único. Estamos falando de um país que tem mais de 200 etnias, que tem pessoas completamente diferentes, cujas opiniões são muitas vezes bloqueadas por ações do governo."
Caso contrário, quem ganha é o discurso do opressor. "Não podemos tratar todo russo como agressor e começar a perseguir russo que vive fora da Rússia. É algo que não pode acontecer. Temos de lutar contra a russofobia para não alimentar o discurso do governo."
Convivência pacífica
No período em que viveu em Moscou, o correspondente da Globo notava a presença de ucranianos na capital russa e um clima de relativa paz.
"Eu não via nada diferente na convivência entre ucranianos e russos que vivem em Moscou. Todos com quem interagi me deixaram tranquilo para falar russo com eles. Eles tinham um passado em comum e diziam que o conflito era uma coisa restrita à esfera política. Hoje em dia parece que o cenário mudou um pouco."
Sobre o apoio ao governo, ele lembra que Putin foi reeleito em 2018, enquanto ele estava na Rússia. "Acho que existe uma tendência da população jovem de ser mais crítica ao Putin, mas as pessoas tentam não criticar diretamente o governo quando estão sendo gravadas ou quando estão dando declarações oficiais."
Apesar das críticas ao líder do país, que já acumula quatro mandatos presidenciais, há sempre um contraponto. "Mesmo essas pessoas ponderam que a Rússia que o Putin herdou era pior do que a que ele construiu nos últimos 22 anos."
Batalha interna
Por fim, a sensação de cobrir essa guerra é uma "batalha interna", nas palavras do próprio jornalista. "Ao mesmo tempo em que vejo essas atrocidades da guerra, penso na vida que levei lá, em tudo que aprendi, no carinho das pessoas comigo. Sempre fui muito bem recebido. Dá aquela sensação estranha de ver um lugar que foi tão bom para você fazer isso com o povo ucraniano."
Para Marcelo Courrege, é bem difícil ser imparcial em uma cobertura como essa, mas ainda assim é possível mostrar os dois lados. "Não dá para justificar a invasão da Rússia à Ucrânia, mas dá para tentar contextualizar, mostrar que, no passado, houve uma espécie de flerte que pode ter provocado uma reação mais ostensiva."
O correspondente avalia que o mais importante é saber separar o governo da Rússia da própria Rússia. "A Rússia é o povo russo, que muitas vezes discorda de tudo o que está acontecendo e não consegue ter voz para se fazer representado. Meu sentimento em relação à Rússia continua sendo muito forte, de gratidão, de carinho, de admiração pela história, pela cultura, pelos autores que me formaram como pessoa, mas recrimino demais tudo que está acontecendo."
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