João Gordo: 'Votava nulo, mas vou de Lula para Bolsonaro não levar de novo'
Se em 1993 a banda Ratos de Porão lançou a música "Suposicollor" contra o ex-presidente da República Fernando Collor (que pediu a renúncia no ano anterior), agora, em 2022, não seria diferente. Para o novo álbum do grupo punk paulistano, de título "Necropolítica", o atual governante do país, Jair Bolsonaro (PL), foi "homenageado" na faixa "Alerta Antifascista."
Sem citar o nome do presidente da República, o vocalista João Gordo canta as seguintes frases na faixa que abre o trabalho: "Genocida depravado/ Ditador que come gente/ Um perigo eminente/ Mentiroso imoral/ Ser humano decadente/ Especialista em matar/ Privatizando o presente/ Sem futuro para sonhar".
Ao comentar a letra da canção em entrevista para Splash, João Gordo afirma: "Você ouve uma música dessa e pensa o quê? Que ela foi escrita para o Papa Francisco? Claro que não. Eu estou vendo acontecer na minha frente uma distopia monstruosa e a estou descrevendo. A música é para ele [Bolsonaro] mesmo".
"Necropolítica" é o 13º disco de estúdio do Ratos de Porão e o primeiro de inéditas do grupo em oito anos. O trabalho a ser lançado hoje nas plataformas digitais e em formatos físicos tem como temas a pandemia do coronavírus, o governo brasileiro, a corrupção, o negacionismo, o bolsonarismo e a ascensão do pseudoneofascismo e do neonazismo.
"As pessoas vêm falar que 'agora o Gordo é lacrador'. Lacrador como, cara? A temática do Ratos sempre foi essa desde a primeira música do primeiro disco da banda. Não é que eu sou contra as coisas, eu narro o que eu sinto e vivo ao meu redor", esclarece João Gordo. "Eu estou vivendo nesse mundo na necropolítica por todos os lados. Então, não tem como eu desviar o assunto."
De sua casa em São Paulo, o vocalista de 58 anos — que além do Ratos de Porão tem os projetos João Gordo e Asteroides Trio, Lockdown e Brutal Brega — prossegue sobre os temas escolhidos: "Esse é um disco que descreve esse momento distópico em que estamos vivendo. Eu escrevo assim, cara. Vou falar sobre São João? Sobre a poluição do plástico? Não tem como não falar sobre o que está acontecendo ao meu redor".
Para o cantor, o título do álbum se refere ao modo como o governo brasileiro lidou com a pandemia do coronavírus, na qual mais de 664 mil pessoas morreram de covid-19. "Necropolítica é a política que a gente tem, é o que o Bolsonaro faz: os políticos sabem e escolhem quem deve morrer e quem deve viver. Claro que morreu 'bolsominion' para c****** nessa, mas pelo menos metade desse número de mortos poderia ter sido salvo se não fosse o negacionismo do governo."
Indignado com o que tem visto acontecer no Brasil, João Gordo acrescenta: "O cara [Bolsonaro] está devendo aí. Esse governo está devendo para os brasileiros. Ao meu modo de ver foi um genocídio pensado, sim. Eles falavam em 'imunidade de rebanho', mas não somos gados, somos pessoas".
Apocalipse cantado
Além da música "Alerta Antifascista", o disco Necropolítica é composto pelas faixas "Aglomeração", "Passa Pano Pra Elite", "Guilhotinado em Cristo", "O Vira Lata", "G.D.O", "Bostanágua", "Entubado", "Neo Nazi Gratiluz" e a faixa título.
"Onde vimos que foi o fim do mundo, o apocalipse acontecendo, foi lá em Manaus. Quer coisa pior do que ser entubado a seco?", diz Gordo em referência à falta de oxigênio e de medicamentos na cidade que levou ao aumento de mortes locais durante a crise sanitária em 2021, e que lhe inspirou a escrever a letra de "Entubado".
"Eu já fui entubado e é horrível. Agora imagina ser entubado sem anestesia e sem os insumos necessários para entubação? Cara, as pessoas tiveram mortes horríveis por causa de corrupção. É por isso que esse é um disco fúnebre", afirma.
"Mundo torto"
Com quatro décadas de estrada com o Ratos de Porão, João Gordo diz que jamais se viu tendo que escrever sobre determinados assuntos em pleno 2022. "Se você pegar as minhas letras antigas, elas são todas atemporais e isso causa um pouco de medo. Mas essa glória ao cafajestismo, ao mau-caratismo, à burrice da ostentação que estamos vendo acontecer é uma coisa muito louca. Que mundo torto é esse em que estamos vivendo, hein? Eu jamais imaginei isso."
O cantor, que presenciou várias fases difíceis do Brasil como a ditadura militar e recessão econômica causada pelo Plano Collor, por exemplo, conta que nunca viveu em uma época tão sinistra como a atual: "No disco estou descrevendo o pior momento da minha vida, cara. Sabe, o Ratos de Porão é uma banda atemporal: o álbum 'Crucificados pelo Sistema' (1984) vai vender para sempre e as letras do 'Necropolítica' também serão para sempre. Ninguém vai esquecer o que passamos e estamos passando."
Os dois singles lançados, "Aglomeração" e "Necropolítica", têm rendido à banda muitos elogios e — como era esperado — gerou revolta nos bolsonaristas. "Quando mexe com eles, quer dizer que o negócio é bom", exclama Gordo, e continua: "Com as minhas letras tenho indignado vários deles por aí. Tem gente dizendo que eu tenho quase 60 anos, mas pareço um moleque de 16. Então, quer dizer que você fica velho e tem que virar um fascista?".
Alerta do neofascismo e neonazismo
Outro assunto que preocupa João Gordo e está presente no disco é a ascensão do pseudoneofascismo e neonazismo que o músico vê acontecendo no mundo, inclusive no Brasil. "Eu falo sobre essa parada desde 2013. Eu já dizia: 'Cuidado com a ascensão do nazismo. Isso vai virar moda e em um futuro tão próximo, no centenário do Terceiro Reich, vai ter suásticas para tudo quanto é lado", ressalta.
"Estamos em 2022 e já está acontecendo, mesmo que devagar. Eu não estarei vivo para ver isso acontecer, mas lá pelos anos de 2038, 2040, no centenário de Adolf Hitler, vai estar acontecendo", completa ele em um momento de adivinhação.
A música "Neo Nazi Gratiluz", que encerra o novo álbum, fala, inclusive, de uma experiência vivida pelo vocalista. "Uma vez comecei a fazer ioga, meditação e umas paradas muito loucas com um pessoal. Mas quando chegou perto da distopia eu percebi que eles eram todos negacionistas e bolsonaristas. Lógico que eu me afastei". Na letra, Gordo canta as frases: "Meditando preconceito contra o SUS/ Sem vacina, neo nazi gratiluz" e "Guru da morte/ Mantra do caos/ Iniciados das hordas do mal".
Disco de "sopetão"
"Necropolítica" não foi um álbum pensado e planejado com antecedência pelo Ratos de Porão. Segundo explica João Gordo, foi um disco feito de "sopetão", na urgência do momento e só ganhou forma por causa de muita dedicação dos integrantes da banda: o guitarrista Jão, o baixista Juninho e o baterista Boka.
"Cara, o Juninho foi de bicicleta na casa do Jão, lá na Vila Piauí [bairro na região Oeste de São Paulo], e começaram a ensaiar umas bases", relembra o cantor. "Depois, o Juninho foi para Santos e junto do Boka montaram as músicas. De repente, de uma hora para outra, eu tinha 12 letras para fazer. Então, esse disco foi vomitado, tanto as ideias quanto as músicas".
Sonoramente, "Necropolítica" resgata o crossover entre os gêneros musicais punk, hardcore e thrash metal tão presente nos discos clássicos da banda, o "Cada Dia Mais Sujo e Agressivo" (1987), "Brasil" (1989) e "Anarkophobia" (1991), que fizeram do Ratos de Porão um dos grupos punk mais respeitados do país e do mundo.
"Os fãs mais antigos vão gostar muito do disco porque está mais metal. As músicas estão mais 'oldschool'", afirma Gordo orgulhoso do trabalho realizado pelos parceiros. "E tem uma curiosidade: é um disco que nunca foi ensaiado com a banda toda reunida por causa da pandemia. Ele foi feito no estúdio. Nunca tocamos essas músicas juntos e vamos começar a ensaiá-las para os shows".
Agora, se as letras de "Necropolítica" vão ficar ultrapassadas ou cair no esquecimento do público quando toda essa crise sanitária e política terminar, João Gordo responde convicto: "Você vai nos shows do Ratos e a galera toda canta 'Suposicollor' até hoje porque ainda acontece a mesma coisa no país. O Brasil não muda, e se muda é para pior."
"Voto até no meu cachorro"
Mesmo com todo o pessimismo de João Gordo sobre a situação do país, o próprio carrega consigo uma esperança de que o Brasil possa melhorar e tem como expectativa o início de mudança na próxima eleição presidencial, em outubro de 2022.
"Temos que ter esperança, né? A gente mora aqui", diz o cantor, e revela: "Há anos que eu voto nulo. Teve vezes que eu nem ia lá votar. Mas dessa vez vou votar no Lula para o Bolsonaro não ganhar de novo. Eu voto até no meu cachorro para que esse cara não ganhe, porque senão esse país vai cair em uma obscuridade maior do que já está".
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