Povo que paga: 4 artistas críticos à lei Rouanet que ganharam verba pública
O mundo dos famosos se dividiu nos últimos dias depois que uma discussão entre a cantora Anitta e o sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, colocou novamente a Lei Rouanet em pauta. Tudo começou quando ele provocou durante um show os artistas que dependeriam de verba pública para se apresentarem. "Nosso cachê quem paga é povo", disse.
Zé Neto não está sozinho nessa. Sérgio Reis, Latino e Netinho criticam o incentivo à cultura. Em comum, todos eles já ganharam dinheiro com shows pagos por prefeituras, muitas vezes, de cidades pequenas. O cachê, portanto, vem da verba pública.
E há uma diferença importante entre os show feitos com verba das prefeituras ou com verba da Lei Rouanet: o teto de gasto e o controle.
Nos shows pagos pela prefeitura, é escolhido o artista, negociado um valor e feito um contrato sem licitação ou tomada de preço com vários fornecedores, já que há apenas um fornecedor possível, que é o próprio cantor. Além do valor do show, a prefeitura costuma bancar todos os custos do artista, como transporte, hotel e camarim. Não há limite de cachês.
Como não há controle específico, além da prestação de contas geral do município, somente o Tribunal de Contas, o Legislativo Municipal ou o MP (Ministério Público) podem questionar os gastos relativos a essas apresentações.
Já nos shows pagos pela Lei Rouanet, o preço de cada apresentação é de até R$ 3.000. Antes, era R$ 45 mil. Quando há uma orquestra, o limite é de R$ 3.500 por músico. O maestro recebe R$ 15 mil.
A Lei Rouanet concede incentivos fiscais a pessoas físicas e empresas privadas patrocinadoras de produtos ou serviços na área da cultura. Para isso, o artista precisa enviar projeto à Secretaria Especial da Cultura, detalhar os gastos e apresentar três orçamentos de fornecedores diferentes. A prestação de contas pode ser acessada no portal dedicado a isso. Veja abaixo alguns exemplos de quanto cada um pode ganhar em eventos públicos:
Zé Neto
Zé Neto, que se gabou de não depender da Lei Rouanet, fez a crítica durante um show da dupla pago pela prefeitura de Sorriso, cidade de Mato Grosso a 400 quilômetros de Cuiabá. O valor total do cachê foi de R$ 400 mil.
"Somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente", disse o sertanejo.
No entanto, o jornalista Demétrio Vecchioli listou outros shows da dupla que foram pagos por prefeituras, todos com valores que variam entre R$ 550 mil e R$ 180 mil, segundo os documentos municipais.
Sérgio Reis
Em entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo, Sérgio Reis afirmou que o cachê pago pelas prefeituras "é dinheiro para o público, não é dinheiro público".
Reis fez essa afirmação numa tentativa de diferenciar esse tipo de pagamento do dinheiro via Lei Rouanet, que é criticada pelos apoiadores de Bolsonaro.
Ao longo da sua carreira, ele já utilizou diversas vezes do dinheiro de prefeituras, mas diz que se recusa a pegar verba do incentivo à cultura.Além de shows em cidades pequenas, Sérgio Reis já recebeu R$ 126 mil do governo do Paraná por participar de campanhas publicitárias em 2021, e outros R$ 398,2 mil em verbas de origem pública pelo Sest (Serviço Social do Transporte) e o Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte), em troca de divulgação de iniciativas das entidades nas redes sociais.
Latino
Latino, que também já recebeu cachê público em ao menos uma ocasião, aproveitou a polêmica de Zé Neto para falar mal de Anitta.
"Enquanto alguns robozinhos trabalham pra sustentar o marketing do 't***' internacional, papai aqui segue fazendo shows há 30 anos. Detalhe, sem ganhar um centavo de mentoria da oposição."
Enquanto alguns robôzinhos trabalham pra sustentar o mktg do "toba" internacional, papai aqui segue fazendo shows à 30 anos. Detalhe, sem ganhar um centavo de mentoria da oposição. #Bolsonaro2022
-- LATINO (@Latinooficial) May 14, 2022
Em 2014, Latino ganhou R$ 120 mil pela participação em um show de 35 minutos no evento "Arena Agosto Show", promovido pela prefeitura de Lagoa Santa (MG).
Em contato com Splash, a assessoria jurídica do cantor declarou: "Latino nunca utilizou a Lei Rouanet em seus projetos. Ao longo da carreira foi contratado para realização de shows de prefeitura, do mesmo modo que inúmeros artistas".
Netinho
Em 2019, o cantor Netinho usou as redes sociais para comentar a polêmica que envolveu Daniela Mercury após o lançamento da música "Proibido o Carnaval", em parceria com Caetano Veloso, e afirmou que nunca usou a Lei Rouanet.
De acordo com apuração do jornal O Globo, Netinho foi outro cantor que recebeu dinheiro público em show. Em fevereiro de 2020, ganhou R$ 125 mil por uma apresentação de uma hora e quarenta minutos, da prefeitura de Corumbá (MS).
E o Gusttavo Lima?
Outro nome que chamou a atenção nessa história é o do sertanejo Gusttavo Lima, por ser um dos maiores cachês do meio. Ele não declarou publicamente que é contra a Lei Rouanet, mas é um forte apoiador das falas de Bolsonaro, que sempre se posicionou contra a antiga forma como os artistas eram beneficiados pelo incentivo.
Com a repercussão dos cachês, muito começou a se comentar sobre o uso de verbas públicas de prefeituras com shows de cantores sertanejos, até que, em 25 de maio, o MPRR (Ministério Público do Estado de Roraima) abriu investigação sobre a contratação de Gusttavo Lima na cidade de São Luiz (RR), com cachê fixado em R$ 800 mil.
A população do município é estimada em 8.232 pessoas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dividindo o cachê acordado pelo número de moradores de São Luiz, cada cidadão estaria pagando cerca de R$ 97 pelo show.
O artista foi contratado para participar da 24ª Vaquejada e da 13ª Feira de Agronegócios de São Luiz, programadas para o mês de dezembro. A Promotoria solicitou informações sobre a contratação do show, como os recursos foram arrecadados e também se haverá retorno para a municipalidade.
Em contato com Splash, a equipe jurídica do cantor enviou uma nota afirmando que o valor do cachê dele é "fixado obedecendo critérios internos, baseados no cenário nacional, tais como: logística (transporte aéreo, transporte rodoviário, etc.), tipo do evento (show privado ou público), bem como os custos e despesas operacionais da empresa para realização do show artístico, dentre outros fatores."
Gusttavo Lima teve um show contratado no valor de R$ 1,2 milhão pela prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG), a cerca de 164 km da capital Belo Horizonte. O contrato, assinado em 11 de abril, faz parte da programação de uma festividade na cidade e virou alvo de pedido de investigação no MPMG (Ministério Público de Minas Gerais).
Dias após a divulgação do valor pago pelo show, a prefeitura da cidade cancelou a apresentação e explicou que o motivo seria a tentativa de "guerra política e partidária que não tem nenhuma ligação com o município e nem tampouco com a tradicional festa" do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.
A apresentação de Lima na cidade de Magé (RJ) é outro exemplo dos valores envolvidos nos shows. O cantor deve receber R$ 1 milhão por uma apresentação na comemoração dos 457 anos da cidade da Baixada Fluminense.
O valor do cachê do sertanejo é dez vezes maior que todo o investimento programado pela prefeitura em atividades artísticas e culturais para o ano de 2022.
Como funciona a Lei Rouanet
A captação é feita por renúncia fiscal. Ou seja, é uma reorganização de imposto, que seria pago aos cofres públicos, mas é direcionado a produções artísticas.
Para pessoas físicas, o limite da dedução é de 6% do Imposto de Renda a pagar; para pessoas jurídicas, 4%.
Todo projeto cultural, de qualquer artista, produtor ou agente cultural brasileiro, pode se beneficiar da Lei Rouanet e se candidatar à captação de recursos de renúncia fiscal. As empresas é que escolhem os projetos em que querem investir, não o governo.
Cabe ao governo aprovar tecnicamente as propostas para captação de patrocínio, sem exercer qualquer juízo de valor acerca do projeto ou de seus proponentes. Apenas avalia se a proposta cumpre com os requisitos técnicos.
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