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ANÁLISE

Funk e sertanejo têm diferenças desde a raiz e Anitta e Zé Neto provam isso

Zé Neto e Anitta representam dois países muito diferentes - Reprodução
Zé Neto e Anitta representam dois países muito diferentes Imagem: Reprodução

Claudia Assef

Colaboração para Splash

17/06/2022 04h00

Há cerca de um mês, a internet viu se criar uma rivalidade. De um lado os sertanejos, puxados por Zé Neto, do outro Anitta. Por mais que a cantora fale que não tem como objetivo "atacar" o estilo musical, não dá para esconder que eles fazem parte uma oposição, historicamente.

Zé Neto e Anitta simbolizam duas culturas genuinamente brasileiras e totalmente opostas em suas origens. De um lado, um homem amparado pela indústria da música sertaneja, a mais sólida e inabalável do país, uma cena que se descolou do nicho rural para os grandes centros urbanos a partir das década de 1970, com a modernização trazida por duplas como Milionário e José Rico, Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano, Rionegro e Solimões, Chrystian e Ralf, Bruno e Marrone, entre muitos outros. Em sua imensa maioria, duplas formadas por homens brancos de origem rural. Do outro, uma mulher que se tornou um sucesso mundial, ancorada na cultura do funk carioca, um gênero musical marginalizado e perseguido desde a sua origem, os bailes black dos anos 1960 e 1970 no Rio de Janeiro, em que a crítica social sempre foi uma tônica.

Até a criação do feminejo, em meados dos anos 2010, a participação das mulheres no sertanejo era coisa rara, apesar do talento e da importância de nomes como Inezita Barroso, Roberta Miranda e As Marcianas. A chegada dessa nova geração, movimentada por Naiara Azevedo, Marília Mendonça, Maiara & Maraísa, Simone & Simaria, foi um movimento de rebeldia diante da normalização do patriarcado, que ganhava nova sonoridade a cada modismo que adentrava o gênero. Mas, fosse no sertanejo romântico, no universitário, ou, mais recentemente, no breganejo, sempre esteve liberado objetificar, trair e diminuir mulheres nas letras das composições.

Esse padrão vem literalmente da raiz do gênero musical mais tocado no país. Historicamente, a música sertaneja nasceu a partir do modo de vida caipira, desenvolvido no interior do estado de São Paulo a partir do contato dos bandeirantes com povos indígenas nos primeiros séculos da colonização. Historiadores contam que parte desses bandeirantes abandonaram o trabalho e se isolaram, formando roças e consequentemente as primeiras comunidades caipiras.

Os primeiros registros da música sertaneja datam de 1929, quando Cornélio Pires, um entusiasta da cultura caipiria e dono de uma fábrica de telhas em Tietê, interior paulista, mandou prensar alguns discos com músicas do gênero. Com a chegada do rádio, na década de 1930, comunidades inteiras passaram a consumir programas voltados para a celebração da vida no campo e surgiram os primeiros shows de duplas caipiras como atração de companhias circenses em excursões pelo interior.

Com letras simples, normalmente retratando o cotidiano da vida no campo, a música sertaneja passou a ser considerada por muitos estudiosos como um produto comercial e alienante, criado para afastar seus consumidores de uma real consciência de classe.

Caipira, ou sertanejo raiz, sertanejo romântico, universitário. Os nomes foram mudando a partir da entrada de novos elementos, temática das letras, mas mesmo com a chegada do feminejo, com letras escritas por compositoras mulheres, o gênero ainda é marcado por uma estética de superficialidade, fugindo de críticas sociais ou políticas e usando como matéria-prima temáticas como amor, saudade, farra, traição, churrasco.

FUNK FEMINISTA

Se hoje Anitta busca inscrever suas iniciais no topo da fama com suas incursões pelo rock, reggaeton e pop, sua formação foi marcada pelos nutrientes do funk carioca. Gênero nascido no Rio de Janeiro, especialmente nos morros e favelas, o funk carioca tem suas origens nos bailes black dos anos 1970, conduzidos por DJs como Ademir Lemos, Big Boy e Messiê Limá no auge do movimento Black is Beautiful, quando artistas nacionais como Tony Tornado, Gerson King Combo, Cassiano, Tim Maia e a banda Black Rio cantavam o orgulho de ser negro.

O movimento que serviu de berço para o funk carioca tinha caráter político. Exemplo disso é a história do produtor cultural Dom Filó, um dos mentores do Black Rio, criador da equipe de som Soul Grand Prix, um dos primeiros bailes e preconizar a importância da consciência negra. Apontado como líder de uma revolta negra, Dom Filó foi perseguido e preso em 1976, sob acusação de fortalecer a luta contra o racismo e criar uma consciência racial nos frequentadores de seus bailes.

Os bailes dos anos 1970 tocavam música americana, especialmente funk e soul music até rock, além de hinos nacionais, como Mandamentos Black, de Gerson King Combo. Foi através da busca por novas sonoridades que o DJ Marlboro, nome fundamental para a criação do funk carioca, importou dos EUA o miami bass, gênero musical com forte acento nos graves, influência direta na criação do batidão.

Marlboro começou a tocar aos 14 anos, em 1977, em festas de amigos e familiares, encantando pelo som dos bailes. Em 1986 ganhou de presente do antropólogo Hermano Vianna (irmão de Herbert, dos Paralamas) uma bateria eletrônica. Ele entendeu que letras em português seriam fundamentais para o sucesso daquela versão brasileira do miami bass. Dito e feito, seu primeiro disco, Funk Brasil, lançado em 1989, uma coletânea de músicas produzidas por ele com vocais em português vendeu, de largada, 250 mil cópias.

"O funk sempre deu oportunidade para as minorias, para os excluídos, para quem não tinha oportunidade. Lacraia jamais teria oportunidade em outro estilo musical que não fosse o funk. Tati Quebra Barraco com sua postura original jamais teria oportunidade cantando e se expressando com sua verdade se não fosse no funk", diz Marlboro.

O DJ citou duas artistas que viveram dias de glória nos anos 2000, a dançarina travesti Lacraia, que se apresentava em programas de TV fazendo suas coreografias para músicas como "Éguinha Pocotó", conquistando de idosos a crianças, e Tati Quebra Barraco, uma das primeiras cantoras do funk a atingir sucesso no Brasil e no exterior, cantando letras sobre sexo e sobre seu cotidiano na sua Cidade de Deus natal.

Mãe aos 13 anos de idade, Tati ganhou fama com o documentário "Sou Feia Mas Tô Na Moda", e abriu caminhos para outras cantoras empoderadas e sem papas na língua, como Deize Tigrona, MC Carol, MC Rebecca, MC Dricka e uma fila de cantoras que ganharam o nome de funkeiras feministas, por falarem abertamente sobre o que der na cabeça, sem medo de julgamentos.

Enquanto o funk ainda batalha para se livrar do preconceito, motivado por sua origem "favelada", o sertanejo prefere não entrar no embate sobre a ética de receber altíssimos cachês em cidades com sérias questões orçamentárias. Dois lados de um mesmo Brasil que precisa de muita terapia para sair dessa.