'Bem viado': TV abre portas, e artistas falam livremente sobre sexualidade
A novela "Pantanal" conta a história de um casal heterossexual, os personagens Jove e Juma. Nos bastidores, no entanto, os protagonistas Jesuíta Barbosa e Alanis Guillen já falaram abertamente que não se veem da mesma maneira.
Ele já declarou ser bissexual e contou ter tido fases "bem hétero" e "bem viado". Ela diz se "relacionar com pessoas" e rejeita rótulos. Fato é que, apesar de simples, essa não era a realidade da TV e das artes há não muito tempo atrás.
Foi só em 2021, mais de 25 anos após estrear na televisão, que o ator Carmo Dalla Vecchia, hoje aos 51 anos, se sentiu pronto para falar publicamente sobre o fato de ser gay. Tendo uma carreira repleta de galãs, Carmo, que atualmente interpreta um personagem hétero na novela "Cara e Coragem", acha que essa combinação não seria possível anos atrás.
"Acho que quando comecei na televisão isso seria inaceitável. Mas tudo foi mudando e as pessoas foram se questionando e sendo questionadas. Existe preconceito de todos os tipos no mundo, mas acredito que as minorias começaram a gritar mais alto e as mídias sociais e os meios de comunicação ajudaram muito nisso", afirma ele, em entrevista a Splash.
De Pigossi a Jesuíta e Alanis: artistas falam livremente sobre sexualidade
Para Carmo, além da transformação social, a forma como nomes como Jesuíta e Alanis lidam com a questão é louvável. "Parabéns a eles que tão jovens fizeram isso. São mais bem resolvidos, menos bitolados, menos moralistas, mais livres, libertos da aprovação alheia, certamente pessoas mais felizes", completa.
A cantora Sandra de Sá se afirmou publicamente como lésbica em 2012, aos 56 anos, quando já tinha uma longa estrada de carreira como artista. A Splash, ela diz que não sentia a necessidade de falar sobre o assunto, mas que foi pressionada a mentir e não aceitou.
No começo da carreira, foi instada a ocultar sua sexualidade com a proposta de um namoro falso com um jogador de futebol. Ela não aceitou por considerar que "mentir dá muito trabalho". "Nunca tive namoradinho de encenação, nunca levei namorado em casa", diz.
Já para a cartunista Laerte, que se revelou uma mulher transgênero em 2009, o obstáculo foi imposto por ela mesma, que reproduzia preconceitos disseminados na sociedade.
"Eu fiquei assustada com a possibilidade de ser gay, de ser viado, de ser bicha, de ser invertido, sabe? Isso tudo era uma coisa muito assustadora para mim, muito peso", afirmou Laerte em abril, em entrevista ao programa "Provoca", da TV Cultura. "Eu fiquei me enrolando por trinta e tantos anos", relembra.
Uma roupa prateada, uma trilha disco e uma dose de coragem
Carmo protagonizou um momento surpresa na televisão em 2021 ao fazer uma declaração para o marido, o autor de novelas João Emanuel Carneiro, com quem é casado há 16 anos, e o filho Pedro, durante sua participação no "Super Dança dos Famosos". Desde a sua estreia na TV, em 1995, em "A Engraçadinha" (TV Globo), foi a primeira vez que o ator falou abertamente sobre sua sexualidade.
"Fazia alguns anos que queria falar (sobre ser gay), mas sempre fui discreto demais. Acho que parei de me importar com a expectativa dos outros e se eu iria decepcionar alguém falando abertamente que era gay. Também entendi que não falar se relacionava muito mais com o meu próprio preconceito do que com o preconceito dos outros", conta o ator a Splash.
Ele diz ter visto ali uma chance de ajudar outras pessoas contando a sua própria história.
Carmo conta que conversou com "o marido, a família, com ex-marido, com alguns amigos, grupo da escola" e não avisou a produção do programa. "Vesti uma roupa prateada justa e fui dançar uma música disco, mas antes falei o que infelizmente não tive a chance ou a coragem de falar antes", conta.
"Nunca me dei bem com o medo"
Foi durante uma entrevista ao apresentador Roberto Justus que Sandra de Sá, hoje com 66 anos, falou pela primeira vez de forma pública que era lésbica. Ela voltou a falar sobre o assunto anos depois, em 2015, em conversa com a apresentadora Marília Gabriela. "Assumir é tirar um peso de você que não existe", afirmou ela na época.
Conhecida do público desde os anos 1980 pela música e muito próxima de Cazuza (padrinho do filho da cantora), ela diz que não tocou no assunto antes porque ninguém nunca lhe perguntou.
"Eu sou o que eu sou. Rolou falar sobre isso naturalmente, num papo natural. Eu nunca escondi. Se assumir é uma questão de se assumir para você. Não tem que mentir, inventar. Se assumir é uma palavra até um pouco chata, o lance é você se respeitar e seguir a sua vida sem ofender ninguém. E ser de verdade", afirmou a cantora a Splash.
Casada desde 2017 com a compositora Simone Malafaia, ela conta que nunca deixou de viver nenhuma relação por medo de que descobrissem sua orientação sexual.
"Nunca me dei bem com o medo. O medo é o pior das doenças, é um grande perigo. E fico feliz quando vejo que o cenário inteiro, não só aqui do meu lado, muda", diz ela.
Neste mês da diversidade, a cantora diz que a comunidade LGBTQIA+ tem "muito a comemorar, mas também muito mais a conquistar".
"O momento de sair para dentro para entrar para fora, eu falo muito isso. As transformações vão acontecendo, e eu nunca fui de ficar me escondendo. O que está se transformando é a consciência de todo mundo, e estou muito feliz com isso. Espero que as pessoas se conscientizem cada vez mais. O negócio é exterminar o medo, ousar, ir para a vida sem medo de ser feliz".
Foi essa vontade de ser quem ela é que fez da cantora Angela Ro Ro um ícone lésbico. Hoje, aos 72 anos, ela foi a primeira cantora brasileira a se assumir lésbica nos anos 1980 e nunca escondeu as consequências que isso trouxe para a vida profissional e pessoal. Ela conta que chegou a ser espancada por homofobia e ouviu de um policial que "sapatão não tem útero".
Pelo pioneirismo, brinca que deveria ser chamada de "lésbica diamante". "Acho que sou lésbica diamante, mereço fila de prioridade. Eu fiz isso há 40 anos, levei um pouquinho na cara, mas acho que valeu a pena ser corajosa. E estou achando muito boa essa liberdade de hoje, as pessoas saindo do armário, acho isso muito sadio", disse ao jornal O Globo em 2019, pouco antes de retornar aos palcos.
Assim como Sandra, outros artistas preferiram um caminho mais discreto quando o assunto é sexualidade e identidade de gênero. É o caso do cantor Lulu Santos e dos atores Marco Nanini e Luiz Fernando Guimarães, que assumiram suas relações homoafetivas publicamente após os 60 anos.
Todas as formas de ser
A questão da identidade de gênero foi o próximo tema a ganhar força dentro da bandeira da diversidade. Personalidades foram se autodeclarando transgêneros e colocando o assunto em pauta em mais uma batalha contra o preconceito.
As modelos Roberta Close e Lea T são dois nomes pioneiros e que se assumiram trans numa época em que não havia abertura para falar sobre o tema. Foi com as histórias de transição da cartunista Laerte Coutinho, 71, e do ator e hoje vereador de São Paulo Thammy Miranda, 39, que o tema se aproximou mais do público.
Apesar de ainda ser jovem comparado às outras personalidades, a história do filho de Gretchen teve muita repercussão e nos permitiu falar mais sobre o tema (que ganhou espaço em novela).
"Quando me identifiquei assim (em 2014) não fiz um anúncio, simplesmente comecei minhas mudanças e as pessoas acompanharam. Lembro que na minha época, pouco se falava sobre isso, a gente teve um ícone que foi a Roberta Close. Mas eu só descobri o que era ser trans aos 32 anos", disse Thammy a Splash.
Comparando os dias de hoje ao momento em que se assumiu trans, ele acredita que houve uma "mudança para melhor". "Sinto que as pessoas tentaram entender mais a minha história e que, talvez, essa tenha sido a minha missão, levar esse tipo de informação de uma maneira leve, de buscar essa igualdade para todo mundo".
Eleito em 2020 como primeiro vereador trans da Câmara Municipal de São Paulo, ele diz que foi para a política não por falta de oportunidades para transexuais no meio artístico, e sim "como um desabafo". "Sempre acreditei que as pessoas devem buscar ser representadas e eu não me sentia representado por ninguém", conta Thammy.
Para mudar esse cenário, ele diz ver na educação o único caminho. "Acredito que existe um movimento muito bom crescendo que respeita e é mais tolerante. Só por meio da educação, principalmente a socioemocional, é que vamos formar pessoas mais preparadas para conviver com a diversidade, criando uma cultura de respeito, paz e aceitação".
O tabu do galã gay
Galã das novelas nos anos 1990, o ator Leonardo Vieira passou por uma situação que ninguém gostaria de viver ao ser obrigado a assumir sua orientação sexual. Discreto quanto à vida pessoal, ele nunca havia feito declarações ou levantado bandeiras. Mas em 2017, aos 48 anos, o ator assumiu que era gay depois que fotos dele beijando um amigo foram divulgadas.
"Fui arrancado do armário contra a minha vontade e depois disso a minha vida virou de cabeça para baixo. Passei a sofrer ameaças de morte e desde então nunca mais fui chamado para um trabalho", contou o ator, hoje com 53 anos. Sua última atuação na TV foi na novela "Os Dez Mandamentos" (RecordTV) em 2015.
Ainda que hoje fale-se mais sobre diversidade e boa parte do público apoie os artistas que se assumem, mesmo os mais novos ainda enfrentam o medo na hora de dar esse passo.
O ator Marco Pigossi, 33, que o diga. Com oito produções na TV Globo, onde fez papel de mocinho, galã e chegou até a interpretar um homem gay, ele enfrentou um longo caminho de medo até se revelar homossexual em 2021. "Até então, eu nunca tinha visto um galã de novelas falar abertamente sobre sua orientação sexual", disse ele em um testemunho publicado no início do ano na revista piauí.
Embora a emissora hoje venha ampliando seus personagens dentro da temática diversidade, nem sempre foi assim, e o receio do ator aumentou depois de ler uma entrevista de Silvio de Abreu ao jornal Folha de S.Paulo na qual o ex-diretor da Globo afirmava que os atores gays "não deviam assumir sua sexualidade publicamente, pois donas de casa e telespectadoras em geral enxergam o galã como machão".
Foram anos de terapia até que o ator se sentisse preparado para ser quem é fora das câmeras. Hoje, de bem com sua sexualidade e morando em Los Angeles, Pigossi deu um tempo na TV e já participou de três séries da Netflix: "Tidelands" (Austrália), "Alto Mar" (Espanha) e a brasileira "Cidade Invisível", de Carlos Saldanha, com a segunda temporada confirmada.
Hoje, atores e atrizes da geração de Pigossi — como Vitória Strada, Nanda Costa, Johnny Massaro, Rainer Cadete, Bruna Linzmeyer e outros — estão indo na direção contrária ao falarem abertamente sobre suas relações homoafetivas e sexualidade. Talvez seja mesmo um sinal de que o medo está com os dias contados.
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