As Galvão lutaram pelo protagonismo feminino e viram o sertanejo explodir
O mundo da música se despediu ontem de Marilene Galvão, que fez história ao lado da irmã, Mary, com a dupla As Galvão. Quando estava prestes a completar 70 anos de carreira, em 2016, a dupla deu uma entrevista para o UOL e falou sobre como viu de perto o sertanejo sair da roça, se mudar para cidade e reinar soberano nas rádios brasileiras nos últimos anos.
Texto a seguir foi publicado originalmente em 07 de julho de 2016:
Embora nunca tenha enriquecido ou recebido os maiores holofotes, a dupla feminina mais antiga em atividade no país diz não se ressentir de quase nada na vida, a não ser da persistente falta protagonismo de mulheres na música.
"Infelizmente, ainda existe preconceito e machismo no meio", disse Mary —"Meire", na pronúncia aportuguesada—, a primeira e mais falante voz das Galvão, que preparam o lançamento de um CD/DVD celebrando sete décadas de estrada, com participações de Daniel, Chitãozinho & Xororó e Marciano, entre outros.
Hoje, as mulheres se libertaram. Ainda falta muita coisa, mas elas estão vindo com uma estrutura e um respaldo que não existiam antigamente."
Mary Galvão, da dupla As Galvão
"No início, era difícil conseguir gravar e fazer shows. Precisava sempre ser em circo. Eles nos olhavam torto, Inclusive, havia muita discriminação vinda das próprias mulheres, que tinham ciúme da gente em relação aos parceiros delas. Mas sabíamos lidar bem com isso", completou Marilene, em sintonia quase telepática com a irmã.
Para as cantoras de "Coração Laçador", "No Calor dos teus Braços" e "Pedacinhos", o domínio masculino de um gênero que descrevem como "machista" está começando a ser quebrado apenas agora, aos poucos, com nomes como Maiara & Maraísa e Simone & Simaria. Suas herdeiras, dizem.
"Hoje as mulheres se libertaram. Ainda falta muita coisa, mas acho que elas estão vindo com uma estrutura e um respaldo que não existiam antigamente. É muito legal ver estrelas como Ivete Sangalo e Claudia Leitte fazendo um baita sucesso. Por que, então, não podemos ter mais duplas femininas?", questionou-se Mary.
Hoje reverenciadas por mais de uma geração, as irmãs Galvão foram uma espécie de Sandy & Júnior dos anos 1940. Incentivadas pelo pai, um alfaiate amante da música, começaram cantando tangos e serestas com sete e cinco anos, em programas de rádio da região de Paraguaçu Paulista.
Passaram pela rádio Difusora de Assis (SP) e a Cultura de Maringá (PR), antes de virem com a família em 1952 para a cidade de São Paulo. Na sonhada capital, tiveram de lutar por espaço em gravadoras então pouco afeitas às melodias do campo. Ainda mais cantadas por mulheres. As irmãs Galvão e a Inezita Barroso eram exceções de um universo restrito.
Soma-se a isso o preconceito sobre o próprio estilo, que só veio a mudar nos anos 1980. Segundo as Galvão, antes disso, era comum ver sertanejos se mudando para a cidade, enriquecendo, e, na hora de comprar um disco do gênero, dizendo ao vendedor que aquilo, na verdade, era um presente para sua empregada.
"Havia um preconceito danado naquela época. Graças a Deus, não tem mais. E isso só aconteceu porque nós, Cascatinha & Inhana, Tonico & Tinoco, Zico & Zeca, e tantos outros, trouxemos nossa música com muita garra", analisou Mary.
Ao lado de Tonico & Tinoco e outros artistas de raiz, as Galvão têm seu nome gravado na história da música popular brasileira. Elas, que possuem um memorial mantido pela Prefeitura de Paranguaçu Paulista, ajudaram a criar não somente a música, mas também o que hoje conhecemos como o Dia do Sertanejo, celebrado anualmente em 3 de maio. São as grandes patronas da festa, da qual participam há 54 anos.
Questionadas sobre evolução da música, as Galvão recordam que a transição do estilo caipira para o sertanejo urbano, precursor do atual estilo universitário, têm dois grandes "culpados", e eles não são Chitãozinho e Xororó.
"Na verdade, isso veio antes, com Léo Canhoto & Robertinho. Eles que colocaram guitarra e bateria na música. Foi um protesto geral na época. Mas foi aí que o povo da cidade começou a prestar atenção na nossa cultura. Tudo mudou", contou Mary.
"Causos"
Sobre as histórias mais marcantes da carreira, As Galvão lembram, primeiro, o dia em uma fã imaginou que elas eram irmãs de Frei Galvão, morto há quase 200 anos, além do recente encontro com Roberto Carlos em um show. Elas aproveitaram e ligaram para a mãe, dona Maria, hoje aos 95 anos, avisando que estavam com o cantor. E a senhora desligou na cara do rei. "Tadinha, não acreditou."
Outro bom "causo" é o da aparição no filme "E a Vaca Foi Pro Brejo" (1981), do diretor e amigo José Adalto Cardoso, em que elas aparecem em apenas uma cena, cantando em cima de uma pouco estável carroça de boi.
"Foi o dia inteiro para fazer aquilo. Era um caminho muito estreito, e carroça empacava, não passava. Depois, quando levamos a família para ver no cinema, virei para trás e falei para prestarem atenção. Mas foi tão rápido que me virei, e a cena já tinha passado."
"Também tem uma história da época do circo. Naquela época, não tinha camarim. Era uma barraca no meio do barro. Aí um dia eu pisei numa bosta, e aquilo ficou atravessado no meu salto. No meio do show, fui num cantinho e limpei numa cortina. No dia seguinte, voltamos para dizer 'tchau', e a mulher dona do circo estava doida, gritando. 'Quem foi o filho da puta que limpou a bunda na minha cortina?' (risos)", diverte-se Marlene, aos risos.
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