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Diretor de doc sobre funk: 'Entre Bolsonaro e Anitta, Brasil fica com ela'

Anitta fez história no VMA e apresentou o funk brasileiro para a elite da música norte-americana - Dia Dipasupil/Getty Images
Anitta fez história no VMA e apresentou o funk brasileiro para a elite da música norte-americana Imagem: Dia Dipasupil/Getty Images

Colaboração para Splash

30/08/2022 04h00

Fã de MPB, o cineasta Luiz Bolognesi, 56, viu (ou melhor, ouviu) o funk furar a bolha das suas referências pelos ouvidos das filhas, então com 12 e 14 anos, em meados de 2016. As batidas tocavam no carro, bombavam nas festinhas de aniversário e até nos eventos de lançamento dos filmes de sua produtora.

"Isso despertou muita curiosidade. Achava a musicalidade de uma qualidade incrível, mas ficava chocado com algumas letras. De algumas eu gostava. Outras me deixavam horrorizados", contou Bolognesi em uma entrevista por videoconferência na última terça-feira (23). "Mas, antes de julgar, aquela música sempre me pegou."

Naquela época, pesquisas já mostravam que o funk já era o estilo musical mais ouvido pelos jovens no país.

Foi quando o diretor concluiu que deveria estudar o fenômeno mais a fundo. Para isso, era preciso compreender as origens de um ritmo que remodelou as antigas festas black no Rio de Janeiro.

Sob a influência da música eletrônica produzida na Alemanha da banda Kraftwerk, virou batida nos EUA do Miami Bass, aportou no Brasil pelos discos da cena internacional e explodiu nas imensas caixas de som dos bailes Furacão 2000 onde a cultura negra, modelada nos batuques do samba e do candomblé, se reconheceu e se aglutinou.

O cineasta foi então a campo para ouvir alguns dos principais nomes dos primórdios como Tony Tornado, DJ Marlboro e Cidinho.

Dobrou a esquina dos anos 1990 com Buchecha e o Bonde do Tigrão e chegou a fenômenos recentes, de Valesca Popozuda a MC Carol e Ludmilla, passando por MC Bin Laden, MC Guimê e a turma do Kondzilla, produtora de hits e videoclipes que fizeram do YouTube uma vitrine do funk brasileiro, já não somente carioca, para o mundo.

O resultado está na série documental "Funk.doc: Popular & Proibido", que estreia hoje na HBO Max.

Diretor de filmes premiados, como "A Última Floresta", sobre os povos yanomamis, e roteiristas de longas de ficção como "Bicho de Sete Cabeças", Bolognesi diz ter chegado ao funk por caminhos subjetivos, motivado pelo interesse das filhas, e também objetivos. Como antropólogo, ele conta ter buscado entender os protagonistas do funk não a partir de seus valores, mas a partir da forma em que o "outro" vê o mundo.

Para isso precisou se despir também de preconceitos que tiveram de ser expostos e contestados já nas primeiras entrevistas.

"O funk é um fenômeno complexo que me interessou muito objetivamente pelo desejo de entender a cultura do brasil. Meus amigos intelectuais diziam: 'por que você vai fazer série sobre funk? Essa música machista e misógina?' Considero isso um preconceito depois que me aproximei do pessoal do funk. Não fui eu que me despi de preconceitos. Os entrevistados é que me despiram".

De fato, quem assiste à série não observa a voz do diretor, que jamais aparece. São os artistas, produtores e estudiosos do fenômeno quem tem o campo livre para falar.

"Eu chegava ao MC Guimê e perguntava para que ostentar riqueza em um país pobre como o Brasil. Ouvi respostas maravilhosas. Ele me contou sua história, lembrou de quando não tinha dinheiro nem para comprar chinelo Havaianas", relembra.

"Os bens de consumo sempre foram esfregados na cara das classes populares. A ostentação é uma resposta a essa humilhação" Luiz Bolognesi

"Da mesma maneira, quando se fala de machismo, decidi ouvir as mulheres (há um capítulo dedicado apenas às vozes femininas do funk) e elas mostraram como usam a música para falar coisas fortíssimas contra o machismo e o racismo", explica.

"O funk tem algumas letras horripilantes, mas isso está no mundo. O Brasil é machista, o mundo é machista. E racista. Isso se reflete no funk. Mas dizer que o funk é isso é ignorância. No funk a voz da resistência ganha amplitude e uma força extraordinária."

Prova disso, segundo o cineasta, é que o funk inverte uma lógica histórica no Brasil, segundo a qual é a elite quem determina o que as classes populares devem consumir.

"Hoje a quebrada é que está dizendo o que se consome no Brasil. E a elite está consumindo, como foi na época do samba. Eles estão dizendo o tempo todo: 'nós ditamos a cultura do país'. São jovens pobres e negros falando quais são seus valores, que roupas usam, como põem o boné ou cortam a sobrancelha. E aquela música vai tocar na festa de 15 anos da filha do desembargador".

A série entra em cartaz no momento em que um conjunto de livros dedicados ao funk começa a ganhar também o mercado editorial. Um exemplo é a obra "O funk na batida - Baile, rua e parlamento" (Edições Sesc), de Danilo Cymrot.

Bolognesi atribui esse interesse crescente à necessidade de entender como o funk se tornou a música mais consumida pela juventude brasileira. "Isso desperta interesse em todas as áreas".

A principal delas, diz, é econômica. "Tudo o que brilha economicamente passa a ser reverenciado e estudado. E o funk está brilhando economicamente. É uma indústria muito importante porque distribui renda. É muita grana que está indo para a favela através dos artistas, de DJs, das festas, dos clipes."

Outra explicação, segundo ele, é o contexto de repressão à cultura negra e aos movimentos populares encarnado pelo atual governo.

O diretor lembra que, nos anos 1970, havia uma profecia temerosa segundo a qual um dia a favela desceria o morro e se apresentaria ao Brasil.

"Isso aconteceu, mas não com a navalha. O morro desceu com a música e conquistou o país. Muita coisa está mudando para melhor através do funk. É uma cultura que confronta muito claramente algumas máximas extremamente repressivas. O funk na periferia é uma voz libertária, de aceitação do outro, das pessoas trans, de todas as religiões. O funk é polifônico. Os artistas se apropriam das novas tecnologias para fazer sua música e peitar as narrativas conservadoras, racistas, reacionárias e intolerantes."

Anitta, funk, agronegócio e o sertanejo

Bolognesi diz observar uma certa intolerância do chamado "universo agro e sertanejo" à cultura produzida pela periferia. O recalque ocorre por uma diferença de concepções de mundo.

"O agro é uma economia de concentração de renda. Ele gera riqueza para o Brasil, tem muita influência no PIB e isso é indiscutível. Mas a renda não se distribui. É um setor que emprega pouquíssima gente nas fazendas. Os caras enriquecem com toneladas de incentivos fiscais", critica.

"É uma brincadeira alguém querer falar de Lei Rouanet com a quantidade de renúncia fiscal, inclusive do sistema financeiro, para o agro. Já o funk é a voz perseguida pelo Estado, que coloca a luta contra a miséria, contra a repressão, contra a concentração de renda em primeiro plano. Tem um embate ideológico muito claro."

Ele salienta, porém, que o funk teve a perspicácia de driblar esse embate.

"O funk infiltrou a sua batida no sertanejo. E está em todo lugar. Está no forró, no sertanejo, no brega, no gospel. O funk tem o poder de pegar o seu oposto e conquistar, seduzir. É uma habilidade", diz o diretor, que compara essa capacidade das populações periféricas virarem o jogo sem bater de frente à capoeira.

"Os produtores musicais sertanejos estão procurando os produtores musicais do funk o tempo todo. O DJs estão pedindo beats. Tem vídeos de sertanejos convidando funkeiros pra tocar com eles e vice-versa. Ou seja, dá para fazer resistência à luta sem o confronto bestial, sem o confronto das armas."

"O funk se infiltra e faz a revolução de dentro pra fora. A própria Marília Mendonça estava fazendo esse diálogo com as meninas do funk e dizia 'eu também sou feminista'. O funk e o sertanejo estão num caminho e eles se encontram enquanto voz e cultura", conclui

Maior referência do funk na atualidade, a cantora Anitta foi envolvida, recentemente, em uma série de ataques produzidos por cantores sertanejos identificados com Jair Bolsonaro.

Para Bolognesi, os grupos que tentam criar uma dicotomia entre funk e sertanejo buscam apenas "organizar suas narrativas". "Mas isso não pega. No universo musical mesmo não há esse embate. Pelo contrário. O funk já conquistou o agro. Entre Bolsonaro e Anitta, o Brasil fica com Anitta".

MC Catra

Quem assistir à série verá uma das últimas aparições de MC Catra, cantor e compositor morto em setembro de 2018. "Foi um encontro maravilhoso", diz Bolognesi.

"O MC Catra já estava doente e só pode nos receber porque ele teve uma melhora no hospital. [...] Ele nos recebeu e quem assiste pode perceber a potência, a força, o humor e o amor que ele tinha pelo funk. O MC Catra foi uma das vozes que me despiram de preconceitos."

Durante o encontro, em uma cena que acabou não editada na série, o cineasta perguntou se o entrevistado não considerava misógina uma cena em que ele passava cartão de crédito nas nádegas das mulheres durante uma apresentação.

"Ele começou a me olhar torto, como se perguntasse 'o que esse branquelo está falando?' Achei que ia me dar uma porrada. Mas ele disse que aquela performance era uma forma de mostrar a força da mulher. E que quando você coloca o cartão nas nádegas de uma mulher, não tem quem tire. E respondeu: 'preconceituoso é você'."

Após a entrevista, Bolognesi disse que um se encantou pelo outro. Eles começaram a idealizar uma série ficcional baseada na vida de MC Catra. "Vamos fazer logo porque não tenho muito tempo", disse o artista.

O trabalho partiria de uma série de depoimentos que seriam concedidos em sua casa ao diretor, mas a ideia ficou apenas nos planos. Catra morreu logo após a segunda internação.

"Eu perdi o motivo principal de fazer essa série de ficção. A ideia era fazer a série com ele. É o modo que eu gosto de trabalhar. Infelizmente a gente perdeu um grande gênio e também essa série."