'Os Anéis de Poder': como a série mais cara da história se tornou realidade
As feições simpáticas e descontraídas de Owain Arthur, Patrick McKay e Ismael Cruz Córdova na pré-estreia de "O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder" na Cidade do México talvez pudessem disfarçar a enorme pressão que paira sobre as cabeças de elenco e produção da série mais cara já produzida para a TV ou o streaming.
Embora sorrissem, brincassem e cumprimentassem fãs e jornalistas de forma alegre e cordial, eles camuflavam o nervosismo. Aquela era apenas a segunda vez em que os primeiros episódios da série eram vistos pelo público. A primeira havia sido alguns dias antes, na pré-estreia ocorrida em Los Angeles.
Antes disso, foram cinco anos de intervalo entre o momento em que a Amazon anunciou a aquisição dos direitos de adaptação de parte do universo criado por Tolkien e a estreia da série esta semana. Um projeto ousado da empresa em um momento de declínio dos serviços de streaming, com a força da fortuna do seu fundador, Jeff Bezos, o segundo homem mais rico do mundo.
O atraso no lançamento, com a pandemia pelo caminho, as cobranças dos fãs da franquia e o temor de que apenas um sucesso retumbante vai justificar um empreendimento deste tamanho estão nas cabeças dos atores e dos responsáveis pela trama.
"Pergunte-me novamente em duas semanas", responde o cocriador Patrick McKay, aos risos, quando Splash questiona se ele está pronto para ter sua série minuciosamente analisada pelos fãs.
"As pessoas parecem engajadas, e isso é muito gratificante. Mas também é estressante. Sinto-me exposto e vulnerável. Tantas pessoas trabalharam duro nisso e queremos que o resultado seja o melhor possível. Vai demorar um pouco até sabermos o que as pessoas realmente acharam. Mas é emocionante." Patrick McKay, um dos criadores de "O Senhor dos Anéis: Anéis de Poder"
Assine o Amazon Prime Video para assistir a "O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder"
Grandes gastos, grandes responsabilidades
Foram cerca de US$ 468 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões) gastos filmando os oito episódios da primeira temporada na Nova Zelândia, segundo dados confirmados à revista Time pelo governo do país da Oceania.
Desde então, investimentos em marketing e divulgação não pararam, e o valor de produção deve superar o estimado US$ 1 bilhão (R$ 5,19 bilhões) em breve. As filmagens da segunda temporada devem começar em outubro e, ao todo, serão cinco para contar a história desenhada por Patrick McKay e JD Payne.
Os valores, em perspectiva, são maiores do que os vistos em grandes produções recentes para as telinhas. Mais do que isso, se tornam realidade em um momento peculiar: a Amazon vai na contracorrente de concorrentes como Netflix e HBO Max, que passaram a adotar uma estratégia de conter gastos após quedas no número de assinantes e crises de gestão.
O megassucesso "Game of Thrones", por exemplo, gastou aproximadamente US$ 100 milhões (cerca de R$ 519 milhões) por temporada, com o custo por episódio começando em US$ 6 milhões (cerca R$ 31 milhões) e escalonando até US$ 15 milhões (cerca de R$ 78 milhões) na temporada final.
Mais recentemente, a mesma HBO dedicou "menos de US$ 20 milhões" para produzir cada um dos 10 episódios da primeira temporada de "A Casa do Dragão", segundo a Variety.
Mesmo altos, esses valores continuam bem abaixo do orçamento de "Os Anéis de Poder". Somente a aquisição dos direitos de adaptação, que incluem os três volumes de "O Senhor dos Anéis", "O Hobbit" e os apêndices, custou cerca de US$ 250 milhões à companhia.
De onde vem todo esse dinheiro?
O Prime Video tem uma diferença crucial para seus concorrentes. Diferentemente da Netflix ou da HBO, a Amazon é, antes de uma empresa de conteúdo e mídia, uma companhia de e-commerce. Além de espectadores para filmes e séries, o serviço busca também clientes fiéis para o comércio virtual da Amazon.
A empresa é liderada por Jeff Bezos, segundo homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada de US$ 171 bilhões (cerca de R$ 890 bilhões, na cotação atual). O valor foi estimado pela revista Forbes, que desde 1987 lista anualmente os donos das maiores fortunas do planeta.
Fã declarado da história, Bezos se envolveu diretamente nas negociações para a aquisição dos direitos.
Com tanto dinheiro investido, as expectativas aumentam exponencialmente, já que espera-se um retorno igualmente grandioso. O sucesso ou não da produção pode definir o futuro da plataforma de streaming entre as grandes.
Para o colunista Guilherme Ravache, de Splash, é difícil saber até que ponto trata-se de um empreendimento da Amazon ou um projeto de Bezos.
"O fato é que não faltaram recursos desde [a compra], já que a conta da série deve superar US$ 1 bilhão. A conta de todo modo não fecha. O Prime custa R$ 14,90 por mês no Brasil. Precisaria de 335,6 milhões de assinaturas/mês para a conta fechar. Para efeito de comparação, a Netflix tem cerca de 220 milhões de assinantes no mundo", destaca o colunista.
"Bezos saiu do posto de CEO, mas diante da conta, agora a série irá determinar o futuro da empresa no streaming. Se a produção for um sucesso, ajudará a mostrar que a Amazon pode criar uma grande franquia e alavancar a plataforma para vender mais produtos em seu e-commerce e atrair mais assinantes", ele continua.
"Mas se falhar, apesar de sucessos recentes como 'The Boys' e 'A Lista Terminal', o Prime deve confirmar a visão geral de que não é um player capaz de produzir conteúdo original relevante, o que deve diminuir a produção de originais e forçar uma mudança de estratégia."
Nem tudo é como se sonhou
Nos últimos cinco anos desde que o Prime Video anunciou a produção, em novembro de 2017, muita coisa se transformou no cenário da televisão. Na época, com "Game of Thrones" caminhando para a sua última temporada, muito se especulava qual seria a sua substituta. E todas as novas "grandes séries" queriam o título.
Mas o mundo de alta fantasia de Gelo e Fogo cairia num limbo delicado e sutil com as reações divisivas do final dado a Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e Jon Snow (Kit Harington). Com a pandemia, o favoritismo de grandes dramas complexos, recheados de violência e com protagonistas antagônicos, deu lugar ao fenômeno da positivista "Ted Lasso" e maratonas de "Modern Family" ou "The Office".
O sucesso das brigas entre Lannister e Stark foi substituído por dramas cômicos de família do hit "Succession", e a própria HBO encontrou uma "próxima Game of Thrones" em "House of the Dragon".
Diante de tudo isso, ainda existe espaço para "O Senhor dos Anéis"?
Com os olhares devidamente alinhados, existe.
"JD, eu, nossa equipe incrível, nossos produtores, designers, todos trabalhamos muito duro para fazer exatamente isso", explica Patrick.
"Queríamos que o programa fosse acessível. Queríamos entregar que esta é a Segunda Era aos fãs. E eles têm lido a vida inteira sobre as aventuras de Frodo, imaginando: Como Númenor é? Como é a peregrinação dos Hobbits? Mas, ao mesmo tempo, queríamos que a série tivesse um drama autêntico emocional em sua essência, que fosse universal, atemporal e com o qual as pessoas conseguissem se identificar."
Por isso, antes de mergulhar na Terra-Média de Tolkien e conhecer a Ilha de Númenor e o reino de Khazad-dûm, é bom alinhar as expectativas. Os dragões, a nudez e o apelo sexual de "GoT" dão lugar a uma adaptação cuidadosamente curada e dedicada à narrativa. É possível sentir que há mãos de fãs em todos os processos.
O que também não significa que não haja possíveis polêmicas. "Os Anéis de Poder" tem um material rico e extenso em mãos, e adaptá-lo para as telas também inclui determinadas liberdades criativas do time de produção, sobretudo no encurtamento do tempo e na criação de novos personagens.
Por exemplo, a Segunda Era dura milhares de anos, e a série condensa toda esta história em um tempo bem menor. Isso faz com que personagens imortais, como os poderosos Elfos, possam conviver com mais facilidade com humanos mortais. Caso seguisse o fluxo de tempo dos livros, alguns personagens humanos teriam que morrer a cada dois ou três episódios.
Ainda que tenham uma lógica, essas mudanças não necessariamente caíram no gosto de alguns dos leitores mais ávidos e temerosos.
"Não nos consideramos autores da série de nenhuma maneira", continua McKay. "Somos serviçais, na melhor das hipóteses. Com isso, quero dizer que nós fomos até os livros, vimos a história que Tolkien deixou e o nosso trabalho é trazê-la à tona do modo mais fiel e respeitoso possível — espero que também seja respeitável. Mas a história é: A Forja dos Anéis, A Ascensão de Sauron, A Épica Saga de Númenor, A Última Aliança. E isso dá um plano bem rápido. E o nosso trabalho é adaptar e dar vida a isso."
Escolhas difíceis e o legado fantasma
Para o elenco, mesmo diante de uma nova história, conectá-la ao legado dos filmes de Peter Jackson é uma imensa responsabilidade, que recai sobretudo sobre os ombros dos intérpretes de personagens que já apareceram nas trilogias de "O Senhor dos Anéis" e "O Hobbit".
"O que era incrível no Tolkien é que ele criou este mundo, a Terra-Média, e escreveu milhares de anos de história nos quais Galadriel aparece em praticamente todos", explica Morfydd Clark, que interpreta uma versão mais jovem da elfa.
"À essa altura, ela tem milhares de anos. Ela vai envelhecer bastante. E ela fala que, com o ganho do conhecimento, há perda de inocência. E foi a isso que me apeguei. Os anéis do poder serão criados e isso vai mudar a Terra-Média para sempre. E também vai mudar Galadriel, particularmente."
Fã confessa de histórias de fantasia e, sobretudo, do mundo criado por Tolkien, a atriz galesa de 33 anos não esconde sua empolgação ao adentrar este mundo, e diz estar pronta para as comparações que inevitavelmente vão acontecer entre sua versão da personagem e aquela interpretada por Cate Blanchett.
"Sendo eu mesma uma fã, acho que estou preparada para o nível de análise, porque também faço isso. Mas é empolgante. Não há por que fazer algo, a não ser que seja visto e discutido. Acima de tudo, sou fã de fantasia e terror. E parte de estar nessas comunidades é o discurso. É assustador, mas é como deve ser", esclarece, ao ponderar que essa conexão também pode ser uma cilada.
"É uma ladeira escorregadia. Não, mas acho que será interessante. Assim que estrear, vou me aprofundar mais, porque há tantas possibilidades e não quero me apegar a muitas delas", reflete.
Sem o envolvimento de Peter Jackson, "Os Anéis de Poder" vem com a missão de continuar o que os seis filmes do diretor e roteirista neozelandês fizeram pelo legado tolkieniano, mas também acaba passando pelo mesmo filtro econômico.
Se o objetivo é fazer bonito, não se pode perder de vista que as duas trilogias, juntas, arrecadaram quase US$ 6 bilhões mundialmente. Além disso, a trilogia original recebeu 30 indicações ao Oscar, e teve o total de 17 vitórias.
Tecnicamente, a nova série não fica para trás dos livros, e resta saber se a história, ainda que deslumbrante, será o suficiente para captar a audiência, seja dos fãs versados na literatura tolkieniana ou não.
"Esse mundo é tão visceral, todos conseguem se identificar com ele também", opina o ator Trystan Gravelle, intérprete de Ar-Pharazôn.
"Todas as raças. É um mundo bem heterogêneo, esse mundo fantástico que Tolkien criou. E eu acho que se conecta com todo mundo. Então sentimos um orgulho imenso, uma grande honra. E, por causa de tudo, toda a mão de obra que foi colocado nele... Acho que é apenas empolgante. Tem uma energia nervosa sobre a gente. É como se estivéssemos ligadões o tempo todo. Então eu não acho... Não há tanta pressão."
Novos tempos
Um dos sinais de que a série busca uma conexão mais forte com o público consumidor, tendo em vista os discursos que pedem mais representação e diversidade étnico-racial, é justamente a escalação de atores que trazem isso para o centro da trama.
A escolha do porto-riquenho Ismael Cruz Córdova para o papel do elfo Arondir, por exemplo, é um destes sinais. Aos 35 anos, o ator, que chegou inclusive a aprender capoeira para as lutas e os embates executados por seu personagem, interpreta um elfo silvestre que vive um romance proibido com uma mulher humana. Por isso, a quebra de paradigmas em que ele se envolve tem mais de um significado.
"Eu recebo de braços abertos. Eu lutei por esse papel. Fiquei fazendo testes por cinco, seis meses. Fui rejeitado várias vezes. Eu repetia: 'Não vou aceitar um não'. Fui para cima ferozmente", recorda. "E você diz que eu significo muito para as pessoas, e a razão pela qual eu faço isso é porque elas significam muito para mim. Sabe? E ter esse lugar afortunado para nos trazer a esse mundo, eu não acho que seja provável. Então estou muito feliz de estar nesses painéis, pôsteres e tudo o mais e os acolho."
Já a atriz Sophia Nomvete, que interpreta a princesa Disa, dos anões, diz que não assume a responsabilidade de sua personagem com leveza.
"O que isso faz é abrir as portas para tantas pessoas que podem ver isso, assistir e conhecer a franquia mas que, para conseguirem se enxergar nela e imergirem na história, o caminho é conseguirem ver versões de si mesmas as encarando, para lembrar que ainda há esperança e possibilidades para pessoas que se parecem conosco, em uma franquia desta escala", pontua a atriz.
"Sempre há o que se fazer, mas ser parte de algo desta magnitude é algo muito novo. Estou honrada de representar esse momento revolucionário, porque é exatamente isso que é."
Se tais escalações, que assumem liberdades criativas, incomodam parte dos fãs, para McKay, não há desculpas para reações extremistas.
"Qualquer um que assista à série, tem o direito de ter a opinião que quiser. E se não quiserem assistir, está tudo bem também. Ninguém pode ser racista. Ponto. Mas direi que, desde o início, abordamos cada aspecto - relacionado ao design, elenco, tudo — tendo como base os livros. E, vendo os livros, nós percebemos que há mais diversidade na Terra-Média do que foi visto em adaptações anteriores. E nós tentamos nos manter fiéis a isso."
*A repórter viajou a convite do Prime Video
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