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Godard homenageou cinema brasileiro em filme com Glauber Rocha

Glauber Rocha participou do filme "Vento do Leste", de Godard - Reprodução
Glauber Rocha participou do filme 'Vento do Leste', de Godard Imagem: Reprodução

De Splash, em São Paulo

13/09/2022 13h37Atualizada em 13/09/2022 15h50

Jean-Luc Godard, célebre cineasta francês, morreu hoje aos 91 anos. Ele ficou conhecido por ser um dos fundadores da Nouvelle Vague, movimento francês da década de 1960 que mudou a história do cinema.

Com obras como "Acossado" (1959) e "Viver a Vida" (1962), Godard dirigiu grandes atrizes, como Anna Karina, com quem foi casado, e Brigitte Bardot. Suas inovações na filmagem e montagem influenciaram toda a estética das produções cinematográficas que conhecemos hoje.

Em 1969, o cinema brasileiro cruzou o caminho do francês. No final dos anos 60, Jean-Pierre Gorin, parceiro de Godard no coletivo de cineastas Dziga Vertov, apresentou o diretor a Glauber Rocha. O cineasta brasileiro, diretor do clássico "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1963), impressionou Gorin com seu filme "Terra em Transe", lançado em 1967, e apresentou a ele o tropicalismo.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, Gorin conta que apresentou Godard e Rocha na Itália, à época da produção do filme "Ventos do Leste" (1969). Como outros trabalhos do coletivo, o longa-metragem pretendia abordar questões anticapitalistas no contexto do movimento político de Maio de 68, na França. O período ficou marcado por uma efervescência da cultura jovem, greves gerais e ocupações estudantis.

"Eu sei que partiu de mim a ideia de arregimentar Glauber e oferecer-lhe o papel dele mesmo, como sinal falante na encruzilhada das várias formas de cinema", contou o cineasta.

Godard e Rocha tinham visões divergentes quanto ao cinema. O francês pretendia "desconstruir o cinema" e romper com a indústria cinematográfica, enquanto o brasileiro defendia a construção de uma indústria no Brasil "com 300 cineastas brasileiros produzindo 600 filmes para todo o Terceiro Mundo", frase que cita em "Ventos do Leste".

Por isso, no filme, Glauber Rocha aparece em uma encruzilhada. De braços abertos, ele recita "Divino, Maravilhoso", música de Gilberto Gil e Caetano Veloso gravada por Gal Costa em 1969.

Uma mulher se aproxima dele e pergunta: "Perdoe, camarada, se interrompo a sua luta de classe, tão importante, mas qual é o caminho do cinema político?".

Com a mão direita, ele aponta para na direção do "cinema desconhecido, o "cinema da aventura". Com a esquerda, ele aponta para o "cinema do Terceiro Mundo": "É o cinema da repressão, da opressão fascista, do terrorismo. [...] É o cinema bola-bola de Miguel Borges", diz, citando o cineasta brasileiro de "Cinco Vezes Favela" (1962). "É um cinema que vai construir tudo. A técnica, a casa de produção, a distribuição, os técnicos, 300 cineastas por ano para fazer 600 filmes para todo o Terceiro Mundo", continua.

A mulher segue para o lado esquerdo e reflete, fora da cena: "Você viu que o cinema materialista só nascerá quando atacar, em termos de luta de classe, o conceito burguês de representação."

No ano seguinte, Rocha ironizou a obra de Dziga Vertov e sua participação em "Ventos do Leste" em um artigo publicado na revista Manchete: "Não sou gaiato para me meter no folclore coletivo dos gigolôs do inesquecível Maio francês."

"A aparição de Glauber em 'Vento do Leste' é ao mesmo tempo uma homenagem ao Cinema Novo e uma peça afetiva de um teatro 'naïve', que indica que os trabalhos feitos no Brasil nos obrigaram a desbastar nosso caminho para fora da mata [...], rumo à especificidade do nosso tempo e nosso espaço", avaliou Gorin, 35 anos depois, para a Folha.