Caco Barcellos critica violência policial: 'O Brasil não tem pena de morte'
Caco Barcellos lançou em 1992 um livro que se tornou um marco para o jornalismo ao retratar a violência policial na periferia de São Paulo. "Rota 66 - A Polícia Que Mata" narra a investigação sobre o assassinato de jovens, geralmente pobres e negros, por um grupo de matadores que opera com o aparente aval da justiça militar. Agora, 30 anos depois, o livro se torna uma série para o Globoplay.
Ao falar das dificuldades de escrever o livro, durante conversa com a imprensa ontem, o jornalista criticou as mortes legitimadas pelo Estado por meio de operações policiais e reiterou não haver pena de morte na Constituição Federal do país.
"A maior dificuldade, sem dúvida, foi conviver com as histórias das pessoas que são vítimas dessa violência. No começo, a grande motivação era fazer uma denúncia. Eu queria dizer que o Brasil não é signatário de nenhum projeto que envolva pena de morte. A Constituição é clara e não permite que ninguém tire a vida dos outros, sejam autoridades ou não. Evidentemente há uma lacuna (na lei) para a legítima defesa", disse Caco.
Foi justamente ao analisar as mortes justificadas por legítima defesa dos polícias que o jornalista encontrou uma ferida aberta: vítimas inocentes eram mortas, mesmo sem estar nos confrontos com os policiais.
"Bastava trabalhar meia dúzia de horas na apuração dos casos para descobrir uma quantidade imensa de contradições. Com o passar dos anos, fui ficando muito assustado e criei um banco de dados. Ao identificar alguém, perguntava para a Justiça se era criminoso ou não, e a Justiça me dizia que não. Me disse isso 2.200 vezes, das 4.200 pessoas que identifiquei... Embora considere grave matar criminoso, evidentemente é mais grave ainda matar pessoas inocentes que nem sequer tiveram um ato ilícito ou um confronto com a polícia. Isso me assustou muito", afirmou.
Eu só não desisti diante daquele susto porque eu sofro com a injustiça que envolve uma pessoa alheia à minha história. Pensei várias vezes em abandonar (a investigação) para sofrer menos, mas imediatamente isso se transformava em combustível para continuar.
Caco Barcellos sobre a escrita do livro "Rota 66"
Vencedor do Prêmio Jabuti (1993), o que motivou o pontapé da investigação jornalística do livro foi a execução de três paulistanos no início dos anos 1980 pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), tropa de elite da polícia militar de São Paulo.
Jovem e recém-chegado à metrópole, Caco começou a apurar e identificou que o número de vítimas era muito maior que imaginava.
"Entendi que também sou um 'correspondente de guerra' porque a nossa guerra é permanente. A gente usa essas três palavras para identificar o profissional enviado para um conflito armado convencional: uma força do exército de um lado e uma população civil de outra se for uma revolução civil ou dois exércitos convencionais trocando violência. No Brasil, não é assim", afirmou o jornalista.
É o estado brasileiro vestido com o fardamento das polícias militares atacando a sociedade civil como se fosse inimiga. É o estado brasileiro vestido com o fardamento das polícias militares atacando a sociedade civil como se fosse inimiga.
Caco Barcellos sobre a morte de inocentes pela polícia
O jornalista reflete que, em muitos casos, os jovens mortos relatados no livro deixaram filhos pequenos ou namoradas grávidas. Essas crianças cresceram sem a presença do pai.
"Como é viver com a ausência do pai sabendo que o Estado tirou a vida dele? O pai morto paga com imposto o trabalho de quem o matou. Imagina quando passa uma viatura diante desse filho que ficou órfão: o que ele vai pensar daquela unidade? Não tem como não refletir sobre isso: que sociedade é essa que estamos construindo?", lamentou.
Pesadelos
Ao cobrir as injustiças sociais envolvendo violência até hoje, o jornalista do "Profissão Repórter" disse que se aproxima das famílias e acompanha de perto o sofrimento delas.
"A gente fica quatro meses convivendo com as pessoas que estão sofrendo aquela situação de extrema injustiça, envolvendo execução extrajudicial. A pessoa é surpreendida na rua simplesmente porque é negra. Se ela foge com medo da abordagem, é considerada suspeita. Se é suspeita, merece um tiro na nuca. Depois se investiga se é criminosa ou não", continuou, em tom de indignação.
Caco contou ainda que o trabalho já lhe proporcionou pesadelos. "Eu não saberia contar quantas vezes eu acordei com pesadelos horrorosos, com gritos horrorosos. Evidentemente, fiz um processo terapêutico para entender que eram essas vidas eliminadas que (me) acompanham", prosseguiu.
Na série, o responsável por interpretar o jornalista é o ator Humberto Carrão. Paralelamente, a produção audiovisual também mergulha na biografia do jornalista, mostrando a dificuldade de Caco em conciliar a investigação com a criação do filho, fruto de um antigo casamento, e o seu relacionamento com a fotógrafa Luli, vivida por Lara Tremouroux.
Ancorada na pesquisa e nas experiências relatadas por Caco Barcellos no livro de 1992, a série dramatúrgica estreia na próxima quinta-feira (22) no Globoplay. A cada semana dois novos episódios serão disponibilizados na plataforma de streaming. No total, serão oito.
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