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Do discurso de Mano Brown às eleições de 2022: esquerda voltou à periferia?

O ex-presidente Lula durante caminhada de campanha no Complexo do Alemão, no RJ - Marcos Vidal/Futura Press/Folhapress
O ex-presidente Lula durante caminhada de campanha no Complexo do Alemão, no RJ Imagem: Marcos Vidal/Futura Press/Folhapress

De Splash, em São Paulo

16/10/2022 04h00

Mano Brown protagonizou um dos discursos mais incômodos para a esquerda brasileira, há exatos quatro anos, quando subiu no palanque da campanha de Fernando Haddad (PT) à Presidência da República, em um comício, no Rio de Janeiro.

À época, o rapper criticou o "clima de festa" e destacou a necessidade de as lideranças voltarem à base.

O alerta feito pelo músico, no entanto, acabou se cumprindo e o Partido dos Trabalhadores saiu derrotado nas eleições de 2018. No Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo em que Brown cresceu e o partido era historicamente forte, por exemplo, Jair Bolsonaro obteve 36,6% dos votos contra apenas 28,3% de Haddad, no primeiro turno.

Nas últimas semanas, porém, a fala do artista voltou a viralizar nas redes sociais e reacendeu o debate sobre a importância do diálogo e da construção de políticas públicas nas regiões mais pobres das grandes cidades do Brasil.

Quatro anos depois, quem está pautando o debate político na periferia? A direita aprofundou seu domínio ou a esquerda conseguiu retomar a influência histórica que exerceu no passado?

Para tirar a dúvida, Splash ouviu artistas, expoentes com diferentes trajetórias na cultura e ligações com o cenário das periferias de grandes cidades.

A avaliação de nomes como BNegão e Samuel Porfírio é um misto de sim, parte do terreno da esquerda foi recuperado, mas há questões antigas que permanecem, como nomes vindos das comunidades estarem mais presentes dentre as lideranças, mas ainda não serem protagonistas.

Outro ponto fortemente apontado é que de 2018 para cá, houve uma expansão consistente de ideias à direita nesses espaços, um movimento conectado ao crescimento das igrejas evangélicas, com líderes mais ligados a esse espectro político.

'Deixou de entender o povão, já era'

Artistas x famosos  - Reprodução/Oxalá Produções/Divulgação/@yushuke_ - Reprodução/Oxalá Produções/Divulgação/@yushuke_
Artistas falam de relação da esquerda com a base
Imagem: Reprodução/Oxalá Produções/Divulgação/@yushuke_

Se em 2018 o PT perdeu espaço em redutos historicamente dominados pelo partido, agora o cenário mudou em alguns deles. Em Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital paulista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva venceu no primeiro turno a disputa por 60,77%, ante 28,8% do presidente Jair Bolsonaro (PL) -no último pleito a diferença foi de apenas dois pontos percentuais na mesma zona eleitoral.

Samuel Porfirio, de 37 anos, rapper da banda Engrenagem Urbana, avalia que na época do discurso feito por Mano Brown o "PT estava, sim, distante das ações enquanto periferia". No entanto, segundo o músico, que vive na Cohab 2, em Itaquera, houve uma "reaproximação da esquerda" ao longo dos últimos anos.

Esse movimento, como acredita o desenhista Guta, de 23, teria sido uma resposta à pressão imposta pela direita, que nas últimas décadas vem conseguindo penetrar nessas regiões de forma articulada.

"Principalmente em igrejas, que existem em grande quantidade nas periferias" diz o jovem, que vive em Diadema, na região metropolitana de São Paulo. Na visão de Guta, há disseminação de "notícias falsas" nesses espaços, "manipulando uma população mais vulnerável",

Guta - Reprodução/@flowaguta - Reprodução/@flowaguta
Guta retrata ambiente urbano
Imagem: Reprodução/@flowaguta

BNegão, um dos maiores nomes do hip hop nacional, também compartilha da mesma sensação. Para o rapper, muitos líderes religiosos ocuparam espaços que a esquerda ainda não conseguiu alcançar.

"O que eles falarem está valendo. Tanto que fizeram um governador assim do Rio. Não é só tiozão do zap. O zap é uma parte. A parada é muito gigantesca. A palavra do pastor é a palavra de Deus. Esse pessoal é a base, e a esquerda não vai lá."

Para Aloysio Letra, de 41, morador de Guaianases, a "esquerda hegemônica ainda teima em não dar visibilidade às suas bases e lideranças comunitárias, sobretudo às pessoas pretas e indígenas das periferias". De acordo com o produtor cultural, a busca por indivíduos famosos na internet "ainda faz com que se deixe de aproveitar as potências reais de articulação nas periferias."

Apoio pop

Anitta - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Anitta declarou apoio a Lula por meio das redes sociais
Imagem: Reprodução/Instagram

A fala de Aloysio parece encontrar eco quando observada a lista de apoios celebrados pela campanha de Lula. Durante todo o primeiro turno, nomes como Anitta, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Grazi Massafera, Bruno Gagliasso, Caetano Veloso e Juliette foram amplamente divulgados nas redes sociais do candidato.

A questão, para o artista, é que o ex-presidente "ainda não entendeu como se dá a criação de protagonismos no campo com o qual está disputando. Na extrema-direita, Bolsonaro coloca pessoas comuns (e medíocres, é verdade) em suas lives, fazendo com que apareçam toda semana."

Bixarte - Reprodução/@bixarte - Reprodução/@bixarte
Bixarte é cantora, poeta e ativista
Imagem: Reprodução/@bixarte

Kalef, de 24 anos, cantor que nasceu e cresceu na periferia de Vitória da Conquista, na Bahia, acredita que os artistas das regiões mais pobres, no entanto, não foram contemplados com a mesma atenção. "Até porque toda essa atenção depende muito da imprensa."

O músico ressalta, porém, que artistas como Anitta, por exemplo, vieram da periferia e que isso tem seu peso. "É uma ascensão que todo artista periférico sonha."

Bixarte, cantora e ativista paraibana, considera importante o apoio de artistas diante do momento em que o país enfrenta.

"Em 2018, eu fiquei super preocupada com as inserções dos artistas, eles não queriam se posicionar. Foram quatro anos de muito desastre. Eu acho que os artistas começaram a entender qual o seu papel para além de cantar, atuar e ser blogueira", ressaltou.

Quebrada que faz política

Rocinha - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Independentemente de movimentos em direção a periferia, que ainda aparecem muito fragmentados e sujeitos a diferentes interesses políticos, há uma percepção hegemônica entre os artistas ouvidos pela reportagem: uma parcela significativa da base vem se juntando para ir em direção às instituições representativas.

"Quando começam a criar movimentos e candidaturas coletivas, como o Quilombo Periférico, que atende a periferia, ou um cara como o Douglas Belchior, ou a Carmen Silva, que atende ao movimento dos sem-teto, no centro, você percebe que existe um movimento de dentro para fora", avalia o rapper Samuel Porfirio.

Aloysio Letra, por sua vez, destaca a importância desses movimentos para o fortalecimento da participação popular.

"As lideranças de periferia têm sido fundamentais para a manutenção da democracia no Brasil, mesmo que infelizmente e ironicamente essa democracia não chegue até nós. É preciso que os grandes partidos entendam e priorizem ações e candidaturas das regiões periféricas, por entender as periferias como prioridade de ação e não apenas como foco de campanha eleitoral para ganhar votos."

E Letra completa: "Há décadas as periferias pautam a necessidade de não serem apenas destinatárias de políticas públicas, mas, sim, formuladoras. Pessoas de fora das periferias têm pouca condição de enxergar soluções para os nossos problemas e sentem pouca urgência nas resoluções. O número cada vez maior de candidaturas das periferias nas câmaras legislativas é um caminho sem volta".