Topo

Do rap à extrema direita: como Kanye West colocou império em colapso

Kanye West - Reprodução/Adidas - Reprodução/Adidas
Artista viu a marca perder valor nas últimas semanas após declarações polêmicas
Imagem: Reprodução/Adidas

Ricardo Pedro Cruz

De Splash, em São Paulo

27/10/2022 04h00

Poucos artistas foram mais ouvidos, mais comentados ou mais rentáveis na música nas últimas duas décadas que Kanye West, de 45 anos, rapper também conhecido pelo nome de Ye.

Controverso desde sempre, West subiu rápido na escala das polêmicas nos últimos meses e se vê agora envolto em uma crise de cancelamento de shows e contratos, que ameaça ao menos em parte a sua fortuna — segundo a revista Forbes, ele já pode ser considerado um ex-bilionário.

A situação atual é resultado de uma escalada que vai além das últimas declarações, das falas que levaram Kanye West a ser acusado de antissemitismo e a entrar em conflito direto com os grupos antirracistas nos Estados Unidos. Aos poucos, Kanye West foi se tornando uma espécie de ícone da extrema direita no país, espantando marcas e parceiros comerciais.

Sobrevivente de um acidente de carro

Kanye West ganhou notoriedade na música pouco mais de 20 anos atrás, após produzir o álbum "The Blueprint" (2001), do rapper Jay-Z.

O projeto foi responsável pela primeira grande virada na carreira do artista norte-americano, que daquele momento em diante passaria a investir na própria trajetória.

Em 2003, quando tudo parecia no eixo, West dormiu enquanto dirigia e sofreu um grave acidente de carro. A experiência, no entanto, acabou inspirando a canção "Through the Wire" — primeiro single do disco de estreia de Ye, "The College Dropout".

O músico, embora tenha tido uma infância relativamente confortável, viu a vida se transformar radicalmente a partir daquele momento. O trabalho chegou a ocupar o segundo lugar no ranking da Billboard, nos Estados Unidos, com quase 450 mil cópias vendidas apenas na semana de lançamento.

Desde então, o artista já vendeu mais de 20 milhões de álbuns em todo o mundo, soma 21 estatuetas do Grammy e seguiu batendo recorde atrás de recorde. O sucesso estrondoso, entretanto, parece acompanhar o rapper na mesma proporção em que acumula contradições.

Do rap à música gospel

Kanye West - Reprodução - Reprodução
Músico começou a mostrar sinais da relação com a fé no início da década passada
Imagem: Reprodução

Uma das mudanças mais radicais na vida do artista aconteceu no movimento que fez em direção à fé. A tendência foi observada pela primeira vez, ainda que tímida, no início da década passada, especialmente em trabalhos como "Yeezus" (2013) e "The Life of Pablo" (2016).

Mas foi em 2019, com o lançamento de "Jesus Is King", que o músico colocou a fé em Deus como tema principal de toda a narrativa do disco. O álbum é, em alguma medida, a materialização de um pedido por salvação. "Deus é a minha luz na escuridão. Oh, Deus. Deus é. Ele, Ele é meu tudo e todos (e nunca voltarei atrás). Deus é", diz o trecho da música "God Is".

No mesmo ano, o artista criou o ato gospel "Sunday Service". Em 2020, quando o projeto religioso completou um ano, West afirmou que este havia salvado a sua vida. A declaração foi feita a moradores de Skid Row, em Los Angeles, nos Estados Unidos, que participavam de um dos encontros.

"Muitas vezes as pessoas dizem: 'Obrigado pelo culto de domingo'. Estou dizendo graças a Deus. Isso salvou a minha vida. Isso foi uma alternativa aos opioides [medicamentos com efeitos analgésicos e sedativos fortes]. Isso foi uma alternativa à pornografia.

Vale lembrar que rapper foi diagnosticado com transtorno bipolar em 2018. "Há muitas pessoas que vão dizer: 'Eu não acredito que você seja realmente bipolar'. Sempre que alguém quer dizer que estou errado sobre algo, escondo a verdade [ou] mentira, eles dizem, 'Você está louco'", contou em entrevista ao podcast "Drink Champs", em 2021.

Um passo à direita

Kanye West - Oliver Contreras - Pool/Getty Images - Oliver Contreras - Pool/Getty Images
Kanye West abraça Donald Trump durante encontro na Casa Branca
Imagem: Oliver Contreras - Pool/Getty Images

Ao mesmo tempo em que a fé foi ganhando espaço na vida pública de Kanye, o movimento dele em direção à direita também foi ficando mais claro. Embora, evidentemente, não seja possível afirmar que uma coisa tenha relação direta com a outra.

Uma das sinalizações mais polêmicas nesse sentido aconteceu em 2018, quando o músico elogiou Donald Trump por fazer o "impossível" e vencer as eleições nos EUA. A declaração foi feita durante uma entrevista ao site TMZ.

Na mesma oportunidade, o artista também descreveu a escravidão como uma "escolha" e foi duramente criticado por isso. "Quando você ouve sobre escravidão durante 400 anos. Durante 400 anos? Isso parece uma escolha", disse.

Em 2020, o músico protagonizaria a própria candidatura à Presidência norte-americana. Era uma campanha desde o início fadada ao fracasso, uma vez que nos Estados Unidos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano, reúnem as condições políticas para de fato competir.

Candidatos independentes, como Kanye West, existem, mas nunca chegam a de fato concorrer.

A campanha, que foi marcada por contradições e piadas nas redes sociais, chegou a ser apontada como uma das possíveis causas para o fim do casamento de Ye com a influenciadora Kim Kardashian.

O interesse por disputar o mais alto cargo da vida pública dos Estados Unidos, no entanto, foi manifestado lá atrás, em 2015. Em uma premiação da MTV, ele já havia dito que pensava em lançar uma candidatura própria.

Discurso antissemita e simpatia com a extrema direita

Kanye West - Reprodução/Twitter - Reprodução/Twitter
West no desfile da Yeezy com camiseta "White Lives Matter" -- "Vidas Brancas Importam", em tradução livre
Imagem: Reprodução/Twitter

Para entender o que aconteceu nas duas últimas semanas, com a perda de contratos, shows e dinheiro, é necessário voltar algumas casas. No início de outubro, durante desfile de sua marca Yeezy, em Paris, o cantor fez um discurso usando uma camiseta escrita "White Lives Matter" (Vidas Brancas Importam).

A frase faz um contraponto ao movimento "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam), que luta em defesa da população negra norte-americana, e foi criticada por personalidades da moda e fãs nas redes sociais. Ao mesmo tempo, encontrou algum eco em setores mais conservadores da sociedade.

A postura irônica diante do movimento antirracista foi condenada pelo rapper Diddy.

Ao rebater o músico, Kanye atraiu para si uma nova acusação, a de ser antissemita. No Twitter, o ex-marido de Kim Kardashian compartilhou prints de conversas com Diddy. Em uma delas, ele afirmou que o artista era "controlado por judeus" e atacou a população judaica.

O discurso de Kanye West encontra eco em grupos extremistas ligados ao neonazismo e radicais do Islã. Dentro desses grupos, vigora a teoria da conspiração falsa de que judeus constituem uma espécie de elite econômica que secretamente controlaria o mundo.

De acordo com um relatório divulgado pela ADL (Liga Antidifamação, entidade judaica com sede nos EUA), "seitas extremistas defenderam as declarações" e aproveitaram as falas para justificar discursos de ódio.

O rapper também voltou a provocar revolta após dizer que George Floyd não teria morrido asfixiado durante participação no podcast "Drink Champs". O músico afirmou que a morte foi provocada pelo consomo de fentanil (medicamento de uso controlado e normalmente utilizado para a anestesia). Floyd morreu em 2020 vítima de violência policial nos EUA. A família do americano decidiu processar Ye.

Após as polêmicas, as suas contas no Twitter e Instagram foram bloqueadas. Ao mesmo tempo, entretanto, a rede social Parler anunciou um acordo com West para a compra da plataforma, que ganhou notoriedade entre os conservadores ligados ao ex-presidente Donald Trump ao longo dos últimos anos.

O preço da polêmica

Diante da reação negativa e da pressão por um posicionamento, a Adidas decidiu encerrar a parceria com Kanye West após os comentários ofensivos e antissemitas do rapper. Com a decisão, a marca interrompeu imediatamente a produção da linha de produtos e todos os pagamentos ao rapper e suas empresas.

A coleção Yeezy com a Adidas, iniciada em 2016, resultou no lançamento de uma nova categoria na marca de Kanye e virou sucesso em todo o mundo. De acordo com reportagem da Forbes, após a quebra de contrato, Kanye deixou de ser bilionário.

A marca esportiva, no entanto, não é a primeira a cortar laços com o rapper. A agência de talentos CCA o demitiu e o estúdio MRC anunciou que decidiu arquivar um documentário sobre a trajetória do cantor. Além disso, a grife Balenciaga e a marca varejista Gap também informaram o fim do contrato entre eles.

Nem mesmo a estátua do rapper no Museu de Cera Madame Tussauds, em Londres, resistiu. Segundo o jornal The Guardian, a figura do artista norte-americano foi levada para para uma sala de arquivo após as declarações do artista.

Músico fez um discurso polêmico, foi criticado por declarações consideradas antissemitas e perdeu contratos de trabalho.