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Rochelly, trans vencedora de reality: 'Família que me xingou hoje aplaude'

Rochelly Rangel no reality show Bar Aberto - Divulgação
Rochelly Rangel no reality show Bar Aberto Imagem: Divulgação

De Splash, em São Paulo

03/11/2022 14h00

Rochelly Rangel venceu a terceira temporada do "Bar Aberto", reality show de coquetelaria que teve o último episódio disponiblizado no YouTube. Ela se torna a segunda mulher trans do Brasil a vencer um programa do tipo — Melissa Sclukebier, cabeleireira, venceu o "The Cut Brasil", da HBO Max, no ano passado.

No Bar Aberto, apresentado pela jornalista e influenciadora Foquinha e pelo bartender Márcio Silva, Rochelly enfrentou outros nove concorrentes em uma competição de preparação de drinques. Os programas contaram com a participação de jurados convidados, como Sabrina Sato, Cauã Reymond e Igão e Mítico do Podpah.

Se Rochelly Rangel se torna a única dentre as pessoas trans brasileiras a poderem se dizer vencedoras de um reality, um tipo de programa que faz muito sucesso no país, a trajetória de vida dela se confunde à da grande maioria. Rejeitada pela família em razão da sua identidade de gênero e sem oportunidades no mercado de trabalho, precisou viver da prostituição para ter o que comer todos os dias.

"Em um processo seletivo, eu consegui ler, pela leitura labial, uma pessoa do RH falar para a outra que eu era 'um trav*co' e que a empresa não poderia ser associada a isso. Eu fiquei sem opções. Por isso, fui me prostituir", conta Rochelly. Mulheres trans e travestis devem ser tratadas no feminino e a expressão citada acima é pejorativa e não deve ser usada.

Esse é um exemplo dentre outros tão repugnantes quanto que a garçonete teve que enfrentar, como trabalhos em baladas e salões de cabeleireiro, todos interrompidos por casos de discriminação.

Rochelly Rangel no reality show Bar Aberto - Divulgação - Divulgação
Rochelly Rangel no reality show Bar Aberto
Imagem: Divulgação

Em entrevista a Splash, ela revela que a rejeição que tinha à necessidade de fazer programas era tão grande que começou a usar drogas para aguentar a situação. "Eu só conseguia fazer programas sob efeito de cocaína, fiquei adicta".

A mudança de rota veio por alertas médicos, de que a dependência estava causando problemas graves, em breve irreversíveis ao seu organismo. Essa atitude demorou ainda porque Rochelly sabia que nem em um hospital seria respeitada. "Me sentida deprimida só de pensar em me tratar, porque eu sabia que iam ignorar a minha identidade", diz.

Volta ao seio familiar, mesmo sob ataques, para poder sair das ruas e planejar o próximo passo. A história de como ela se envolveu com a coquetelaria e chegou ao reality show vai se traçar no Rio de Janeiro, para onde se muda após deixar São Paulo em busca de novas oportunidades, mas ela conta que hoje a relação com os familiares é boa.

"Eu custei a acreditar que tinha sido eu [a vencedora do programa]. A Rochelly não estava acostumada a ganhar muitas coisas. Mas eu estou ganhando, desde que eu vim pro Rio, pro TransGarçonne, hoje eu estou formando a minha família, minha família me aplaude depois de ter me xingado", comemora.

Como vencedora do Bar Aberto, ganhou uma viagem para a Europa para conhecer as fábricas das cinco marcas que patrocinam o programa, Absolut, Ballantines, Beefeeater, Chivas e Lilet, todas da empresa francesa Pernod Ricard. O programa migrou para o YouTube após as primeiras temporadas na TV aberta. Os episódios acumulam, cada, cerca de 3 milhões de espectadores.

'Quando uma pessoa arruma emprego e vira matéria de telejornal é porque a coisa é feia mesmo'

Apaixonada por vôlei desde sempre, passa a frequentar partidas de vôlei nas praias cariocas e aproveita as conversas entre os jogos para pedir emprego. Em um desses jogos, conhece Breno Cruz, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que primeiro a convida a escrever um artigo para um trabalho sobre a empregabilidade de minorias.

É a porta para que ela pudesse conhecer o TransGarçonne, programa de extensão universitária da UFRJ que prepara pessoas trans para o mercado de trabalho no ramo da gastronomia e faz a ponte com empresas do setor.

Pelo programa, se torna garçonete e arranja um emprego. Para ela, o mais surpreende foi que a sua recolocação profissional virou notícia na TV. "Eu virei matéria de telejornal. Quando a pessoa consegue uma vaga de emprego e vira matéria de jornal é porque a coisa é feia mesmo", comenta.

É no Bar Boléia, em Humaitá, que nasce a paixão pela coquetelaria. O bar, que é um espaço com uma equipe feminina voltada para atender mulheres deu à Rochelly a oportunidade não só de trabalhar como garçonete, mas também de entender como funciona o bar, dando início a uma nova paixão.

"Eu tive que aprender para vender, para poder vender. As clientes queriam saber o que combinava, o que harmonizava, e eu fui me informando", relembra. A sua paixão é o Adrimanga Calcanhoto, uma gim-tônica com manga, maracujá, cumaru e pimenta-da-jamaica.

'Fui para fazer drinks, mas também para contar a minha história'.

Assim como quando Rochelly conseguiu seu primeiro emprego, esta também é a primeira vez que uma mulher trans vence um programa e isso também se torna notícia. Para ela, quando aceitou participar do Bar Aberto, ter a sua identidade em foco era algo não só possível, como esperado.

"Eu fui para fazer drinks, mas também para contar a minha história", diz a Splash. Por esse motivo, não se furtou a falar da sua religiosidade de matriz africana e a homenagear criações destiladas com base nas suas crenças ao longo do Bar Aberto. "Levei questões da minha religião para o programa, levei para representar as pessoas trans e o povo preto."

Apaixonada por reality shows, ela conta acompanhar todos os que conversam com a gastronomia. A exceção fica para o "Big Brother Brasil". Na conversa com Splash, ela confessa que suspeitava da participação de uma pessoa trans na edição de 2022 desde que encontrou Boninho em uma gravação na TV Globo e pediu para participar, argumentando que o programa precisava dessa representatividade.

"Ele não disse nada, mas eu soube na hora que teria alguém. Quando vi as notícias sobre a Lina, entendi na hora", diz Rochelly, que faz algumas ressalvas ao comportamento de Linn da Quebrada durante o BBB. Ela entende que a cantora se retraiu e deixou de ir para o enfrentamento em alguns momentos, mas que também compreende as razões. "Ter um corpo como o dela (Lina) ali foi muito importante", ressalta.

Para os próximos passos, Rochelly Rangel planeja abrir um canal no YouTube para falar sobre os assuntos que mais gosta. "Falar sobre coquetelaria, sobre gastronomia, falar sobre histórias. As pessoas se juntam para beber e trocar ideias. Quantas histórias não surgem em uma mesa de bar? Quantas histórias não surgem apreciando bons drinks? Quero muito ter um canal onde as pessoas conversem em torno da coquetéis", conta.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado em versão anterior desse texto, Rochelly Rangel é a segunda, e não a primeira, mulher trans a vencer um reality show no Brasil. Em 2021, Melissa Schlukebier venceu o The Cut Brasil, da HBO Max.