Gal se manteve na vanguarda da música e adorada pelos jovens
Perdemos Gal Costa poucos dias depois de ela ter cancelado sua participação no Primavera Sound São Paulo, festival que nasceu em 2001 em Barcelona como vitrine de tudo o que exala modernidade e alta qualidade musical. Gal faria no dia 5 de novembro no palco do Primavera o show do álbum "Fa-tal", um dos mais cultuados de sua carreira.
Segundo nota publicada em seu Instagram, ela precisou suspender apresentações até que se recuperasse de uma retirada de nódulo na fossa nasal direita. Até este momento, não se sabe se a cirurgia teve relação com a causa mortis da cantora.
Aos 77 anos, Gal se mantinha na mira de um público jovem, talvez na mesma faixa de idade daqueles que ajudaram a construir os alicerces de sua carreira, desde os tempos dos festivais de canção nos anos 1960. Sua vanguarda musical foi moldada ouvindo João Gilberto, o maior gênio "underground" da música no Brasil, e durante a adolescência, quando trabalhou numa das principais lojas de discos de Salvador, a Roni Discos, como balconista. Fosse no seu jeito de cantar, nas modas que lançou, nas letras que escolheu cantar, no seu gestual, Gal era o estereótipo daquela garota rebelde da escola, com quem todo mundo gostaria de fazer amizade.
"Gal tinha muito tesão pela vida, pelas novidades. Ela foi um ícone libertário feminino na época da ditadura, cantando rasgado, com fúria, em 'Fa-tal', com suas roupas, a maneira natural de lidar com seu corpo", analisa a apresentadora Sarah Oliveira. "Isso foi passando de geração para geração, ela se tornou a queridinha dos festivais por causa desse vigor no palco, essa vontade de estar sempre com gente jovem por perto, se posicionando sem medo. Ela me disse uma vez: 'quando você se arrisca e transgride, é muito sofrimento, mas, se é verdadeiro, você acaba tendo liberdade para fazer o que quiser até o final da sua vida, é uma sensação de dever cumprido, sabe?'", contou Sarah, ainda em choque com a notícia da morte da cantora.
Meses antes da pandemia começar, em novembro de 2019, pude ver Gal atuando num dos festivais mais celebrados do Norte do Brasil, o Se Rasgum, em Belém do Pará. Na plateia, jovens na faixa dos 20 anos, cantando todas as letras junto com a cantora. Essa foi uma cena comum ao longo de seus 58 anos de carreira; Gal sempre esteve na mira dos mais modernos, mesmo quando transbordou seu lado mainstream, no final dos anos 1970, quando veio a fase "Gal Tropical", show e álbum que revelaram uma Gal mais popular, deixando a imagem hiponga para trás.
Apesar de manter sua vida privada longe dos holofotes, Gal era assumidamente bissexual e manteve relacionamentos com homens e mulheres ao longo da vida. Mas, como alguém que anda alguns passos à frente da multidão, isso nunca pareceu ser incômodo para ela. Da mesma turma de Caetano, Gil, Bethânia e Tom Zé, colegas desde que fizeram juntos o espetáculo Nós, Por Exemplo, em 1964, em Salvador, Gal tinha aquela certeza de que estava fazendo história, não apenas pelo domínio da voz (e que voz), mas pelo extremo bom gosto e coerência de seu repertório e atitude no palco. Sempre muito moderna, ela se tornou nos últimos anos a headliner preferida de festivais brasileiros, como Coala (SP), FIG (Garanhuns), CoMA (Brasília), Meca Inhotim (MG), Rock The Mountain (Itaipava), Breve (Belo Horizonte), Queremos (Rio de Janeiro), entre outros, e em 2023 tinha planos de fazer shows pela Europa.
Gal sempre combinou com ousadia. Uma de suas performances mais icônicas aconteceu no palco do Imperator, no Rio, em 1994. Quando começou a cantar "Brasil", de Cazuza, que se tornou um hit popular na interpretação de Gal na vinheta da novela "Vale Tudo", da Globo (1989), ela abriu a camisa e cantou com os seios à mostra, chocando boa parte da plateia.
Encabeçando um movimento de valorização da música brasileira nas pistas de dança do mundo todo nos últimos anos, a obra de Gal passou a frequentar cases de DJs e computadores de produtores de música eletrônica. Além de remixes feitos por produtores brasileiros, como da música "Sublime", lançado em 2020 por Diogo Strausz ou o de "Flor de Maracujá", da dupla carioca Bruce Leroys, cujo lançamento seria na próxima sexta (11), mas foi adiado, Gal virou alvo de muitos samples internacionais. É o caso da faixa "Pontos De Luz" (1973), que virou insumo para músicas como "Lite Spots" (2016), do Kaytranada, e "Salvador" (2010), do Madlib, ou ainda "Vapor Barato", que virou cover de sucesso numa versão reggaeira do Rappa em 1996 e foi sampleada pelo rapper Frank Ocean, em 2016, na música "Honeybaby (Ambience 002)". Já "Lágrimas Negras", de 1974, virou munição para a música "Lágrimas", do Baco Exu Do Blues, lançada em 2022.
Seja nos remixes, nos edits, nas versões originais ou em suas performances gravadas, a atemporalidade e a potência da música de Gal Costa são à prova de modismos. Não é preciso bola de cristal para saber que ainda renderá muitos frutos para a música no Brasil e no mundo.
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