Por que os jovens escutam cada vez mais Milton, Caetano, Gal, Gil e Elza?
O público de Elza Soares, em 2014, era predominantemente composto por pessoas maiores de 55 anos. Com o lançamento do álbum "A Mulher do Fim do Mundo" (2015) e uma série de outras ações, no entanto, o cenário começou a passar por um profundo processo de renovação.
O mesmo fenômeno, cada um a seu estilo, época e influência, também foi observado na última década com outros artistas veteranos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Maria Bethânia e Gal Costa (1945 - 2022).
Em festivais cujo público é formado em maioria por jovens, esses nomes consagrados passaram a ser reverenciados por parte das gerações Y e Z. No Coala Festival, em São Paulo, por exemplo, 64% do público tem entre 18 e 35 anos.
O que explica esse movimento? A reportagem de Splash conversou com empresários, fãs, especialistas em marketing digital, produtores, sociólogos, músicos e analisou dados para traduzir a renovação do perfil de quem consome a produção desses artistas. Entretanto, não há uma única resposta para a pergunta.
O fenômeno é resultado de fatores como identificação — seja por meio do discurso ou o sentimento que a cada música desperta —, estratégias digitais, atualizações de linguagens, e tudo aquilo que faz desses artistas únicos (e para o que não há explicação lógica).
"Quando eu escuto as músicas do meu pai, eu vou para algum outro lugar. Depende de cada música, de cada momento que eu estou vivendo na minha vida. O sentimento não tem idade", conta Augusto Nascimento, 29, filho e empresário artístico de Milton Nascimento.
Identificação
Embora a renovação de público seja uma realidade, não há um consenso quanto ao crescimento dele diante do contexto geral.
O sertanejo permanece como estilo predominante entre aqueles que têm de 15 a 29 anos, o que representa 60% dos entrevistados em pesquisa Datafolha divulgada em julho. A MPB é citada como estilo preferido por 16%.
Dani Ribas, doutora em sociologia pela Unicamp (Universidade de Campinas), não considera o percentual alto.
A especialista, no entanto, atribui o interesse, ainda que em parte, ao "ecletismo" da juventude atual. "Eu acho também que esse ecletismo não se dá tanto por gênero musical, mas sim por clima, por sensação buscada na música".
Além disso, há todo um repertório desses artistas no inconsciente coletivo de gerações de brasileiros — seja por meio de novelas, filmes ou até mesmo influência familiar. Jovens entrevistados pela reportagem reforçam a sensação.
Mayara Simeão, 28, e Luís Couto, de 34, consideram o convívio familiar uma das principais causas do gosto musical. "Eu cresci ouvindo Milton, a turma toda do Clube da Esquina. Cresci ouvindo com os meus pais", conta Luís.
O acesso ao "catálogo" de composições conhecidas também entra em cena ao mesmo tempo em que o volume de lançamentos é cada vez maior — e impossível de acompanhar. Para a doutora em sociologia, Dani Ribas, é neste momento que as pessoas buscam pelas melodias e letras do repertório pessoal de lembranças.
"Naquele lugar que você se identifica com as músicas porque ela te suscita alguma emoção. A isso a gente dá o nome de música de catálogos, que são as músicas já lançadas há algum tempo. Elas têm a função de causar a identificação pela emoção", explica.
Pensamento e política
Se por um lado existe a identificação por meio dos sentimentos, por outro, há uma atualização de discursos e linguagens. É preciso considerar ainda que artistas como Caetano, Gil e Gal, apenas para citar alguns, construíram trajetórias musicais ao mesmo tempo em que sempre compartilharam pensamentos de vanguarda.
De acordo com Guilherme Kastrup, produtor musical responsável por "A Mulher do Fim do Mundo", de Elza Soares, há algo de revolucionário nas obras desses artistas que vai ao encontro de uma parcela da juventude atual. A interação dos veteranos com músicos da nova geração também é apontada como elemento facilitador da construção desse diálogo.
"São artistas que revolucionaram a arte no seu tempo. Eles têm um pensamento de vanguarda, de busca pelo novo, contemporâneo. Isso acontecia antes e são características que permaneceram com eles. Eles também se conectaram com artistas mais jovens, músicos, produtores, compositores que possam fazer um diálogo do discurso, uma ponte, atualizado para as novas gerações", analisa o produtor.
As preferências políticas e as diferenças sociais — em especial quando se considera os níveis de escolaridade —, podem aproximar ou afastar os jovens da obra desses cantores. A polarização política observada no país ao longo dos últimos, por exemplo, pode ter feito com que uma parcela dessas pessoas tenha entrado em contato com lutas políticas vividas no passado.
"Não estou dizendo que isso acontece com todo mundo, mas é possível que em algum momento uma parcela desses jovens estejam redescobrindo o Brasil por meio desses artistas", ressalta Dani Ribas, diretora da Sonar Cultural Consultoria.
Um exemplo, ainda que clichê, é o que vem acontecendo com a música "Apesar de Você", de Chico Buarque. A letra, que é um símbolo da resistência à ditadura militar, passou a ser usada por críticos ao governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas redes sociais.
A composição é citada pela jovem Mayara Simeão, 28, que completa: "A música traz todo esse sentimento que nós estamos passando nesses quatro anos".
'Vitrine correta'
Sentimento, discurso e posicionamento nunca faltaram a esses artistas. Entretanto, para estabelecer pontes e dialogar com gerações cada vez mais conectadas ao ambiente digital foi necessário se reinventar. A lógica "gravação, lançamento e turnê" precisou de novos elementos com a chegada das plataformas de streaming e o avanço das redes sociais.
Para alinhar a carreira de Elza Soares às novas realidades, o empresário Pedro Loureiro entendeu que era fundamental rejuvenescer o público da cantora, que morreu de causas naturais em janeiro deste ano."Quem fez o trabalho foi ela. Ela cantou e construiu uma carreira brilhante. Eu coloquei na vitrine correta. E a vitrine correta são as redes sociais e as plataformas digitais."
Segundo o filho de Milton Nascimento, o empresário Augusto Nascimento, a entrada no circuito de festivais de música e a realização de shows em formato de pista também ajudaram na renovação de público do pai. No último show da turnê "A Última Sessão de Música", que marcou a despedida do artista dos palcos, em BH, o público era predominantemente jovem.
"São pessoas que, às vezes, estão lá [nos festivais] para ver outros shows e acabam se descobrindo apaixonadas pela obra do meu pai. O show é o maior caminho para alcançar o coração das pessoas. Acho que esses shows em festivais tiveram uma grande força para isso", conta Augusto.
'Mistério sempre há de pintar por aí?'
Traçar um panorama de um fenômeno em curso, como o é o caso desde, fica ainda mais desafiador quando se percebe que não há uma resposta única.
Ao mesmo tempo que existem estratégias e uma lógica de programação nas recomendações de músicas nas plataformas, por outro, há ainda uma infinidade de outros elementos que ficam reservados ao campo das sensações e que não têm explicação.
O que cada pessoa sente quando escuta "Travessia" na voz de Milton, ou "A Mulher do Fim do Mundo", com Elza, é único e individual — ainda que se possa encontrar respostas biológicas para isso. Se "os sonhos não envelhecem", como cantou o Clube da Esquina, a carga de emoção que essa e outras músicas carregam também não.
Há um Brasil inteiro de histórias, expressões e sentimentos sendo redescoberto neste momento por parte de uma geração que consome música na mesma velocidade com que o mundo se transforma. Pessoa que ajudam a manter viva a poesia, o discurso e a própria identidade.
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