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Quartinha? Por que tradução de 'Wandinha' de repente virou dor de cabeça?

Jenna Ortega interpreta Wandinha Addams em série dirigida por Tim Burton para a Netflix - Divulgação/Netflix
Jenna Ortega interpreta Wandinha Addams em série dirigida por Tim Burton para a Netflix Imagem: Divulgação/Netflix

De Splash, em São Paulo

08/12/2022 04h00

As primeiras tirinhas sobre "A Família Addams" foram publicadas pela revista New Yorker em 1938, e a popularização no Brasil aconteceu na década de 60, quando uma série em live-action do canal ABC começou a ser transmitida no país. Desde então, de animações aos memoráveis filmes da década de 1990, a existência dos Addams tornou-se intríseca à cultura pop.

Mesmo assim, foi em 2022, 84 anos após as primeiras histórias, que a tradução dos nomes dos personagens tornou-se um problema. Ao menos para alguns.

Depois do lançamento da série "Wandinha", da Netflix, alguns debates sobre o nome da filha mais velha de Mortícia e Gomez esquentaram as bolhas das redes sociais. Influenciadores e fãs começaram a se perguntar "como Wednesday virou Wandinha", alguns com um tom mais condenatório do que outros. Logo o questionamento ganhou um tom de briga e até a plataforma de streaming entrou na conversa com uma brincadeira.

Mas, afinal, como Wednesday virou Wandinha?

O criador das histórias, Charles Addams, escolheu o nome da garota inspirado em uma cantiga infantil popular nos Estados Unidos, que prevê a personalidade de cada criança segundo o dia da semana em que ela nasce. "Wednesday" é quarta-feira em inglês.

O poema "Monday's Child" foi publicado em versão impressa pela primeira vez em 1838. Cada verso deste poema fala sobre um dia da semana, e o terceiro diz:

"Wednesday's child is full of woe"

Em tradução livre, o verso diz que "crianças de quarta-feira são cheias de desgostos". A palavra "woe" também pode ser traduzida como "desgraça", angústia" ou "aflição".

O poema jamais foi popularizado no Brasil, e essa é uma das razões (mas não a única) por trás da tradução de Wednesday para Wandinha.

"A tradução literal, apesar de ser a primeira que vem à nossa mente na maioria das vezes, nem sempre é a mais adequada para todas as obras e textos, em todos os momentos ou para todos os públicos", explica o tradutor audiovisual Felipe Bini.

"Um termo ou nome traduzidos literalmente podem não ter uma sonoridade legal, ou não fazer tanto sentido na língua de chegada por aspectos culturais, por exemplo. Para públicos infantis ou infantojuvenis, a tendência é que as traduções adotem uma abordagem mais 'domesticadora', ou seja, tentem adaptar o texto e os termos à língua e à cultura do público, com menos preocupação com uma fidelidade formal ao original."

Tal contextualização se aplica não apenas aos membros da família Addams — Pugsley virou Feioso, Uncle Fester virou Tio Chico e Thing virou Mãozinha — mas também a outros personagens de animações clássicas.

Basta olhar para alguns dos desenhos animados mais queridos das últimas décadas para compreender. Patolino é Daffy Duck, Pernalonga é Buggs Bunny, Frajola e Piu Piu são Sylvester e Tweety. Essas traduções mais localizadas (ou seja, que consideram traços culturais de cada país) ajudam o público a se conectar melhor com as histórias.

"Acredito que a tradução de Wandinha foi para esse lado, lá nos anos sessenta. Quando se pensou nessa solução, não fazia sentido a tradução literal, Quarta-feira", especula Fabiana Poppius, tradutora para dublagem da série da Netflix. "Antigamente era mais raro manter o nome original. E, quando se cria uma memória afetiva com o personagem, é difícil a gente se desapegar desse nome. Eu ainda sofro por Sininho não ser mais Sininho, por exemplo."

Mudanças vieram com o tempo

Ricci - Divulgação - Divulgação
Christina Ricci interpretou Wandinha Addams nos filmes de 1991 e 1993
Imagem: Divulgação

A primeira dublagem de "A Família Addams", ainda para a série da década de 1960, foi feita pelo estúdio Dublasom Guanabara, hoje extinto. Foi nesta tradução que os nomes abrasileirados foram criados. Os pais chamavam-se Covas e Mortiça, e os demais integrantes eram tio Funéreo, o mordomo Lacraio, o Coisa e as crianças: Feioso e Wandinha.

Algumas traduções foram modificadas quando a série animada de 1973 foi lançada no Brasil. Desta forma, tio Funéreo virou tio Chico, Lacraio virou Tropeço e o Coisa virou Mãozinha. Com o sucesso do filme de 1991, foram essas as traduções que ficaram consolidadas no imaginário popular.

Profissionais das áreas de tradução e dublagem contam que dilemas e dúvidas sobre a melhor forma de traduzir certos termos são comuns, já que cada idioma tem suas particularidades. Mas isso não significa, necessariamente, que cada tradução exija um sacrifício.

"Não é regra que sempre se perde algum elemento ao se traduzir nomes ou neologismos. Isso, como quase tudo em tradução, é algo que varia caso a caso", continua Felipe. "Existem situações em que quem traduz consegue transportar para a língua de destino algo que se aproxima bastante do que o falante da língua original vai experimentar ao ouvir ou ler aquele termo inventado, mas tem vezes em que simplesmente não é possível fazer isso de forma plenamente satisfatória."

É aí que é preciso fazer uma escolha entre priorizar o significado ou a forma, e isso também vai depender da importância de cada um deles na obra, do público-alvo, de todo um contexto que o profissional vai considerar e pôr na balança para decidir.
Felipe Bini, tradutor audiovisual

Os desafios da dublagem

Outro ponto a se considerar na hora de traduzir o texto de um filme, uma série ou um programa de TV é como aquelas frases vão soar na dublagem. É preciso se atentar ao fato que as falas devem se encaixar da melhor forma possível nos movimentos labiais do ator ou da atriz em cena — ou, no caso de animações, na quantidade de vezes em que o personagem mexe a boca.

"Claro que isso não pode ser levado a ferro e a fogo, pois o sentido do texto é mais importante, mas sempre que possível, casar sentido, formato de boca e tempo de fala é o desejável", conta Poppius.

Mãozinha - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Nome em inglês de Mãozinha, de "A Família Addams" e "Wednesday" é "Thing"; dublagem precisou se adequar
Imagem: Divulgação/Netflix

"Às vezes o dublador e/ou a direção de dublagem em estúdio trocam algumas palavras para que esse encaixe entre som e boca funcione melhor, é um trabalho de equipe", continua. "Por exemplo, Mãozinha é muito maior do que Thing, mas é o nome da personagem e os dubladores tiveram que se virar para fazer caber quando aparecia sozinho na fala e eu, na criação do texto traduzido, tinha que fazer minhas adaptações e cortes para não ficar grande demais e facilitar o trabalho dos dubladores."

Para Fabiana, o maior desafio para este trabalho específico foram os trocadilhos.

"O roteiro da série é muito inteligente e tem umas tiradas muito boas que em inglês usam expressões de duplo sentido, sempre com palavras que remetem a facas, objetos cortantes ou afiados", conta.

"Eu tive que procurar expressões em português que tivessem esse tipo de pegada. O enigma da estátua do Poe que a Wandinha tem que decifrar teve que ser todo modificado para dar uma frase em português que remetesse aos dois estalos. Eu não podia traduzir literalmente e tive que inventar enigmas que parecessem ter sido feitos pelo poeta e escritor. O tom da Wandinha foi um desafio também. Apesar de ela ser adolescente, ela tem um vocabulário mais rebuscado em inglês, ela não usa tantas gírias, então eu procurei manter esse tom, essa estranheza."

Há uma resposta definitiva?

Poppius acredita que é necessário analisar caso a caso a obrigação de se traduzir nomes próprios — como foi a questão que gerou o debate atual. Ela reforça que tanto a legendagem quanto a dublagem dão acessibilidade a públicos com preferência e necessidades diferentes, e ressalta a qualidade do trabalho feito no Brasil.

"Eu não acho que haja preconceito com esses profissionais, a dublagem brasileira tem milhares de fãs e é superconceituada. Quanto aos tradutores, talvez haja desconhecimento do processo tradutório e todas as questões que permeiam nosso trabalho."

É muito difícil ter alguma questão que tenha soluções categóricas como a que gerou tanta discussão: não se traduz nome próprio. Não, depende.
Fabiana Poppius, tradutora de dublagem de Wandinha

"Embora muitas opiniões mal-embasadas tenham sido dadas e propagadas como verdades absolutas pelas redes afora, não vejo com maus olhos a curiosidade em si sobre o processo tradutório nesse caso da Wandinha", completa Bini. "Acho que o saldo do debate é positivo por chamar a atenção para o próprio ofício da tradução, que muitas vezes é invisibilizado, e a discussão é uma boa oportunidade de se levar ao público a compreensão de que a tradução é uma área em que raramente regras absolutas têm lugar."

Wandinha ou Quartinha?

Ainda que não acredite em respostas absolutas, Fabiana aprova a decisão da Netflix de manter a tradução originalmente conhecida para o nome da filha de Mortícia e Gomez.

"Eu gosto muito dessa tradução e infelizmente não sabemos o que levou o(a) tradutor(a) a chegar nela. Acho bacana o contraste entre essa menina mórbida com um nome fofinho, e tem toda a questão do tamanho e formato da palavra que pode ter sido considerada na tradução da dublagem. Vai ter um monte de gente que vai discordar, e tudo bem. Não acho que Quarta-feira seria uma solução legal."

Ela aponta ainda que há um universo de possibilidades.

"Se formos pela etimologia de Wednesday poderiam sair soluções como Odineia ou Mercúria, que pensei agora só de brincadeira. Olha quantas possibilidades! Os caminhos possíveis são muitos, mas nenhum será unânime. Outra opção seria manter no original. Sei que os filmes dos anos noventa usaram Wednesday, mas de certa forma não vingou, no imaginário ela continuou sendo Wandinha."