O Ateliê: como lugar que era 'babá de rico' é denunciado por abusos?
Resumo da notícia
- Ex-alunos acusam Rubens Espírito Santo, fundador de escola de arte em São Paulo, de violência física, sexual, financeira e psicológica
- O caso é narrado no podcast "O Ateliê", apresentado pelo jornalista Chico Felitti, responsável pelo sucesso "A Mulher da Casa Abandonada"
- "Houve abuso sexual contra homens e contra mulheres. Tudo relatado por ambas as partes e documentado com vídeos e fotos", diz Felitti
- Rubens afirma que acusações são 'absurdas, infundadas e constituem um verdadeiro linchamento público'
O jornalista Chico Felitti é um dos brasileiros que está sabendo muito bem surfar na onda de podcast documentais sobre crimes. Em 2022, o repórter ganhou notoriedade ao contar a história de Margarida Bonetti, a "Mulher da Casa Abandonada", uma mulher excêntrica que mora em um bairro chique de São Paulo e procurada da justiça americana por submeter uma pessoa à situação análoga à escravidão nos anos 1990.
Agora, em 2023, Felitti mostra haver vida após o grande sucesso da história de Margarida e lança "O Ateliê", um podcast investigativo sobre a escola de arte conhecida como Atelier do Centro, acusada por ex-alunos de promover violência física, sexual, financeira e psicológica por meio de seu fundador, Rubens Espírito Santo.
Rubens Espírito Santo não respondeu ao contato de Splash até a publicação desta entrevista. Caso o artista responda, esta matéria será atualizada. Em carta aberta publicada no site do Atelier do Centro, ele chama as acusações de "absurdas, infundadas e constituem um verdadeiro linchamento público de imagem". Rubens pede desculpas por "eventuais excessos, mesmo que consentidos". Leia a carta completa ao final da matéria.
'Jardim de infância para consertar rico ferrado'
Entre os que denunciam a escola estão pessoas muito ricas. "Milionários com 'm' e bilionários com 'b'", explica Chico Felitti em entrevista a Splash.
Segundo conta o jornalista, possíveis comparações com o podcast anterior podem ser feitas e essa foi uma das primeiras preocupações ao começar a produção de "O Ateliê", afinal, a vítima do primeiro era uma mulher negra e pobre que era escravizada. Já no segundo, as supostas vítimas são pessoas brancas e ricas.
"Eu não queria que a série ficasse reduzida a um apelido de 'babá de gente rica', que nem sou eu que uso, mas é uma aspa de um personagem do segundo episódio que conta que o ateliê tem essa fama. Dizem ser 'jardim de infância para consertar rico ferrado', é o termo que o personagem usa. Mas, eu não queria que parasse por aí."
Tem gente muito rica que está há dez anos dando dinheiro para o Rubens Espírito Santo, mas isso é reducionismo e todo reducionismo é nocivo.
Felitti explica que a visão sobre supostas vítimas serem "ricos mimados" está contemplada na série, mas o repórter explica haver o outro lado. "Encontrei muitas pessoas que trabalhavam para pagar as aulas. Por exemplo, um barman que o salário ia integralmente para o Rubens. Ele passava fome."
"Há também o relato de gente pobre que entrou lá e falou: 'Que porra é essa? Vocês estão malucos, eu já apanho da vida. Não quero apanhar mais em lugar nenhum', e foi embora."
'Ele morreu ou ele foi preso?'
Chico Felitti conta que conhecia rumores sobre o local, mas não tinha certeza. "Eu sabia há anos sobre o ateliê, que tinha palmito nesse pastel. Sabia que havia algo errado porque conheci gente que entrou e foi 'abduzido'. Os ex-alunos usam esse termo mesmo, 'abduzido'."
No entanto, a história só começou a ser realmente investigada pelo jornalista quando, em 2022, ele foi procurado por Mirela Cabral, uma jovem pintora que alega ter sido vítima de Rubens Espírito Santo. Em julho do ano passado, quando a artista decide que irá se expor, Felitti começa a apurar.
Comecei a falar com muitas pessoas, com gente que saiu há 20 anos, com a ex-esposa do Rubens, a namorada de infância dele. Foi uma investigação bastante profunda.
"Encontrei uma pessoa que rompeu com o ateliê há duas décadas e que não quer ser nomeada. Eu cheguei na porta da casa dessa pessoa, eu bati, ela abriu, começou a chorar e falou: 'é sobre Rubens, né?'. Eu falei: 'é' e ela falou: 'Ele morreu ou ele foi preso?'. Eu falei que nenhum dos dois e fomos para outro lugar conversar. Essa pessoa foi comigo até um lugar que a gente tava sozinho e era relativamente discreto e me contou que ele tinha feito com ela. Disse que nem o marido ou os filhos sabiam, mas sabia que 'uma hora alguém ia bater na minha porta'."
As denúncias
Segundo "O Ateliê", os alunos da escola de arte eram submetidos aos mais diferentes meios de violência. Alguns acusam Espírito Santo de bater nos estudantes, com socos e chutes, outros alegam que o professor - também conhecido como "Mestre" - os xingava o tempo todo e os abusava sexualmente.
"Houve abuso sexual contra homens e contra mulheres. Tudo relatado por ambas as partes e documentado com vídeos e fotos", diz Chico Felitti.
Um episódio de abuso é tão pesado que a gente deixou de fora. A descrição da cena é tão forte que, em comum acordo com todos que estavam na sala no momento em que estávamos gravando, decidimos não usar.
Já o abuso financeiro teria acontecido quando Rubens obrigava os alunos a comprarem suas obras. "Ele dizia: 'Você chegou a um grau de elevação aqui dentro que você vai ser colecionador da obra do mestre. Você vai pagar R$ 7 mil por mês para ter uma obra.' Isso era uma honra para eles, tinha status. Então, o pessoal estava dando R$ 70 mil em uma cartolina com um risco."
Críticos de arte procurados pelo podcast afirmam que Rubens Espírito Santo não é conhecido ou relevante no meio artístico.
Por quê?
Ao escutar "O Ateliê", uma pergunta surge na cabeça do ouvinte: "Por que pessoas com dinheiro, privilegiadas e com diversas oportunidades na vida, se sujeitam a este tipo de coisa?".
Para o repórter, a resposta não é simples. "Eu acho que tem uma coisa de relacionamento abusivo, algo que a gente ainda vai se aprofundar nos episódios. Mas é muito difícil ver de fora quem tá dentro tem esse ciclo."
"Entre os 'discípulos', havia quem tinha acabado de tentar suicídio e disse estar em uma fase muito ruim. Quando ele entrou para o ateliê, era obrigado a produzir, a comer, a escrever, e foi se sentido cada vez menos mal e cada vez mais viciado naquilo. "
E agora?
Mirela Cabral e outras três mulheres entraram com uma denúncia contra Rubens Espírito Santo na Justiça. Quatro meses depois, nenhuma testemunha foi ouvida e o processo não andou.
Fora do âmbito jurídico, o lançamento do primeiro episódio, que aconteceu no dia 4 de janeiro, já fez com que novas pessoas que alegam terem sido vítimas apareçam. "Uma pessoa muito famosa me procurou e disse que ela peitou o Rubens uma vez porque o filho dela tava lá dentro e quando ela começou a descobrir as coisas que aconteceram, ela foi lá e ela deu um escândalo."
O podcast
"A Mulher da Casa Abandonada" foi produzido em parceria com a Folha de S.Paulo, mas "O Ateliê" foi desenvolvido todo por Chico Felitti. "Desembolsei R$ 120 mil", conta.
Por isso, o jornalista disponibiliza a opção de assinante, pela Orelo, na qual é possível escutar conteúdo exclusivo, participar de lives e ter acesso aos quatro episódios de cada mês já na primeira quarta-feira. Por enquanto, são dez episódios, com a possibilidade de aumentar.
Abaixo, leia a carta aberta de Rubens Espírito Santo na íntegra.
São Paulo, 05/01/2023
Olá, meu nome é Rubens Espírito Santo. Eu sou artista plástico e fundador da Escola Atelier do Centro, uma escola de arte que existe há mais de 20 anos em São Paulo.
Eu resolvi escrever esta carta aberta ao público para responder a uma série de acusações, que estão sendo feitas contra mim e contra a escola no podcast O Ateliê, de Chico Felitti.
O jornalista acusa, de forma fantasiosa, que o Atelier do Centro seria uma seita obscura, dedicada a dominar seus alunos e tirar proveito econômico deles, ao estilo de seitas como a do curandeiro João de Deus e a do líder religioso Jim Jones.
Essas acusações são absurdas, infundadas e constituem um verdadeiro linchamento público de imagem.
O material produzido por ele traz relatos de ex-alunos que me acusam de agressões físicas e psicológicas, sobre as quais eu vou falar ao longo deste texto.
Para estes alunos, eu peço minhas sinceras desculpas pelos eventuais excessos, mesmo que consentidos, que tenham ocorrido em nossa relação, que em grande parte foi marcada por afeto, cumplicidade, aprendizado mútuo e por longos períodos de convivência.
Antes de mais nada, eu gostaria de falar sobre a escola. O Atelier do Centro não é uma seita, como Chico Felitti pretende fazer crer.
O Atelier do Centro é uma escola que oferece cursos livres de arte, filosofia, programas de acompanhamento, de formação e pesquisa continuada.
Nossa sede fica na rua Epitácio Pessoa, 91, no centro de São Paulo, próximo ao Copan. A escola tem sinalização clara em sua fachada, é aberta ao público e os participantes pagam mensalidades para participar das nossas atividades.
Todos podem ingressar e sair da escola a qualquer momento de forma livre e sem constrangimentos. Não trabalhamos nas sombras, como sugere o podcast.
No Atelier do Centro nós adotamos, de fato, um método bastante rigoroso. Nós trabalhamos com pequenos grupos de artistas, arquitetos, cineastas e outros profissionais de áreas criativas que têm interesse em experiências radicais no campo das artes.
Este modelo de experimentação acaba por formar grupos coesos de trabalho e de convivência, pautados por relações intensas, criação de vínculos emocionais, espírito de grupo, disposição para debater questões pessoais e para embates provocativos, alguns deles bastante duros, que têm o propósito de estimular a criatividade e superar limitações.
Não estamos inventando a roda e nem usamos práticas de seitas. Este modelo de trabalho, com forte envolvimento emocional, está presente em orquestras, grupos de teatro e muitas organizações do mundo da cultura.
Neste contexto de trabalho, é natural e proposital que surjam atritos e situações de confronto, como elementos provocadores. A convivência intensa e radical que propomos pode resultar em excessos, que reconheço, podem ter sido cometidos nas relações com ex-alunos, a quem mais uma vez peço desculpas, caso tenham se sentido negativamente afetados. Respeito as críticas e a dor de cada um.
A proposta de convívio, pautada por este ambiente de confronto, no entanto, sempre foi consensual e estava atrelada a um propósito comum e pactuado entre os participantes. Ninguém foi obrigado a nada. Ninguém foi coagido a nada. Ninguém foi submetido a atividades com as quais não estivesse de acordo.
A ex-aluna Mirela Cabral, que deu origem às acusações, por exemplo, começou a frequentar a escola aos 24 anos. Já era formada em cinema, trabalhava na produção de comerciais, era uma mulher plenamente consciente e livre para fazer escolhas. Ela permaneceu conosco durante três anos.
Assim como ela, todos que passaram pela escola estavam livres para fazer escolhas. Nunca coagi ninguém a nada. E é importante destacar que sempre recomendei a todos os participantes dos nossos programas que fizessem terapia, com profissionais independentes, para aperfeiçoar o processo de autoconhecimento, o que não é mencionado por Felitti, nem pelos denunciantes.
Eu gostaria de deixar claro também a questão financeira. Em primeiro lugar, eu queria informar a todos que não tenho bens, exceto minha biblioteca com 7 mil livros de arte, que será vendida para enfrentar as acusações que agora me são imputadas.
Não tenho carro, não tenho apartamento, pago aluguel, como muitos. Não tenho reservas. Vivo do trabalho na escola e da venda de desenhos e esculturas que produzo. Minhas obras estão presentes em algumas coleções particulares do país.
É importante destacar, também, que nunca obriguei nenhum aluno a comprar minhas obras. Os que tinham interesse em adquirir, o fizeram livremente. Alguns participaram de um fundo para compra de obras, mais ou menos no formato de um clube de colecionadores, muito comum em instituições culturais. Sempre com adesão espontânea. Existem alunos que estão no Atelier há muitos anos e nunca participaram de nenhum fundo.
Diante de toda esta situação, eu queria informar a todos que estamos suspendendo as atividades do Atelier do Centro até que todas as acusações sejam devidamente esclarecidas.
Eu gostaria de lembrar também que linchamentos públicos precipitados não levam a bons lugares. A acusação de que formei uma seita no coração da cidade de São Paulo pode render cliques. Pode ser uma boa história para se contar na mídia. Mas ela não reflete a realidade e incorre numa fake news, cheia de fatos distorcidos e descontextualizados, que eu não posso deixar de contestar.
Muito obrigado pela atenção de todos.
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