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Vai na Fé, reality gospel: por que Globo passa a olhar para os evangélicos?

Sheron Menezzes, Bella Campos, Elisa Lucinda, Manu Estevão e Che Moais formam família em "Vai na Fé" - Globo/João Miguel Júnior
Sheron Menezzes, Bella Campos, Elisa Lucinda, Manu Estevão e Che Moais formam família em 'Vai na Fé' Imagem: Globo/João Miguel Júnior

De Splash, no Rio

20/01/2023 04h00

A estreia de "Vai na Fé" trouxe algo inédito na história recente das novelas da Globo: uma protagonista evangélica. Isso aponta uma tentativa de aproximação da emissora carioca com o público.

Recentemente, a emissora ainda promoveu o reality gospel Altas Promessas no Altas Horas, programa de Serginho Groisman, e divulgou o lançamento de "Deus Cuida de Mim", música gospel de Kleber Lucas. O artista gravou uma versão com Caetano Veloso — faixa essa que está na trilha sonora de "Vai na Fé".

A aproximação da Globo com o público evangélico pode ser explicada pela debandada dessa audiência nas últimas décadas, sendo ela uma parcela que cresce consideravelmente na população, explica a pesquisadora Jacqueline Moraes Teixeira*.

"Globo teve perda a cada ano em relação à audiência dos evangélicos, o que acirrou ainda mais com o governo Bolsonaro. A gente vai perceber que parte desse público vai deixando as novelas da Globo e se conectando às narrativas bíblicas da Record. Enquanto recusa as narrativas produzidas pela Globo, vê a Record como lugar de representatividade."

O atraso na realização do Censo Demográfico, que deveria ter acontecido em 2020, deixou o Brasil sem informações oficiais atualizadas sobre a composição religiosa da população.

Os dados mais recentes apontavam um crescimento de 61% no número de evangélicos entre 2000 e 2010. Há projeções que sugerem que o número de evangélicos supere o de católicos no final da década de 2030.

Por isso, é interessante para Globo financeiramente atrair uma faixa expressiva da população às suas novelas, pois isso aumenta audiência e, consequentemente, publicidade. Além disso, nos últimos anos, faz parte da política da emissora nos ampliar o leque de diversidade e trazer mais representatividade para as telas, seja na dramaturgia, nos programas de auditório ou produções jornalísticas.

Rosane Svartman, autora de "Vai na Fé", notou o aumento da população evangélica após analisar a ficha de pessoas que contribuíam com os grupos focais de "Bom Sucesso", novela exibida em 2019. "A cada 10 pessoas, de 4 a 6 botavam que eram evangélicas", lembrou em entrevista a Splash.

Tentativa passada

Não é a primeira vez que a Globo tenta se aproximar do público evangélico. A partir de 2009, os temas começam aos poucos a serem inseridos a partir de personagens de novelas, como em "Avenida Brasil" e em "Cheias de Charme", a novela das empreguetes.

"Foi um período que a emissora se abriu para falar com lideranças religiosas e do campo gospel, criando alguns programas musicais gospel. Só que a recepção das personagens pelos evangélicos foi ruim, elas foram vistas como estereotipadas. Como consequência, faz o público se interessar e migrar para novelas bíblicas da Record, principalmente em 2015 com 'Os Dez Mandamentos'", diz Jacqueline.

Qual era o cenário da TV em 2015 em relação aos evangélicos?

  • A Globo exibia "Babilônia", novela líder de audiência, mas que rendeu os menores índices da história para a emissora, trazendo debates sobre racismo e a pauta LGBT -- tema sensível a grupos evangélicos.
  • Já a Record exibia "Os Dez Mandamentos", sucesso bíblico que deu um salto na audiência da teledramaturgia da Record.
  • "Nessa relação entre as duas novelas, uma progressista, que tratava de temas centrais de direitos humanos, e outra bíblica, que remontava o imaginário do antigo testamento, a segunda opção venceu e levou o público evangélico. A sensação é que parte desse público não volta para as novelas da Globo, seja em narrativas bíblicas, ou em tramas não bíblicas, mas que tem sexo, historias LGBTs", diz Jacqueline.

Representatividade em Vai na Fé

A Sol, vivida por Sheron Menezzes, faz parte de uma família evangélica, negra e multigeracional, unindo três estatísticas do Brasil de hoje. A maioria dos evangélicos é negra e do sexo feminino, enquanto a pandemia e a crise econômica forçaram uma reconfiguração nas famílias, levando diferentes gerações a viverem no mesmo teto.

"A gente sabe que a população evangélica é majoritariamente feminina e negra. Há ainda a figura da mãe, feita pela ótima Elisa Lucinda, uma mulher que apoia a família, que está sempre orando. Acho que tem muitas chances desse núcleo conseguir uma conexão importante com esse público que saiu da Globo", acredita Jacqueline.

"No Brasil, as novelas conseguem construir uma relação de confiança. É importante que a Globo finalize essa conexão com os evangélicos pelas novelas para que esse público volte a acompanhar não só os folhetins, mas também a programação da emissora", completa a pesquisadora.

A autora Rosane Svartman diz contar com uma equipe diversa, entre pesquisadores e consultores de roteiro, para narrar a história de Sol

São pessoas negras, evangélicas e pastores também. A gente não vai poder dar conta de tudo, mas temos que tentar trazendo diversidade, histórias de vida diferentes e trajetórias distintas.

Splash procurou a Globo para comentar a aproximação da emissora com o público evangélico, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado se houver retorno.

*Jacqueline Moraes Teixeira é, antropóloga, professora do Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Brasília). Ela pesquisa assuntos ligados à religião, gênero e mídia de massa.