Boate Kiss, 10 anos sem resposta: 'Justiça impõe sofrimento às famílias'
Resumo da notícia
- Na semana em que o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, faz 10 anos, série documental trata da dor das famílias de 242 mortos e dos 636 feridos
- A Splash, o diretor Marcelo Canellas fala sobre a demora da Justiça em dar respostas, que envolve a anulação de um julgamento em 2022
- 'Muita gente gostaria que essas famílias parassem, se silenciassem, deixassem de incomodar', diz o jornalista
- Para ele, o documentário mantém viva a luta das famílias: 'Precisamos explicitar o que aconteceu para as pessoas enxergarem o lugar do outro'
- 'Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria' estreia na próxima quinta-feira, dia 26, no Globoplay
O incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS), completa dez anos na próxima sexta-feira. Em 27 de janeiro de 2013, um domingo, o fogo na casa noturna provocou a morte de 242 pessoas, além de deixar outros 636 feridos. Passada uma década, a Justiça não deu uma resposta definitiva sobre o que aconteceu e que crimes foram cometidos ali, para a angústia das famílias.
Decidido a não deixar a tragédia ser esquecida, o jornalista Marcelo Canellas comandou a produção de "Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria", série documental que estreia na quinta-feira (26) no Globoplay. Outra produção, uma série de ficção batizada de "Todo Dia a Mesma Noite", estreia um dia antes na Netflix.
Canellas nasceu em Passo Fundo (RS), mas mudou-se com a família para Santa Maria ainda bebê de colo. Jornalista, ele recebeu uma ligação de seu chefe na manhã do dia 27 de janeiro de 2013, um domingo. O editor em questão pediu que ele fosse a Santa Maria cobrir o incêndio que aconteceu naquela madrugada na boate Kiss. Na ocasião, Marcelo recusou.
Três dias depois, ele retornou a ligação e disse que gostaria, sim, de acompanhar o caso.
"Toda a minha relação afetiva, toda a minha formação, foi feita em Santa Maria. E essa ligação nunca se desfez. Minha mãe mora lá, minha irmã, meus primos e amigos de infância. Minha recusa inicial se dava graças a essa ligação", explica, em entrevista a Splash.
"Mas eu não consegui. Achei que, como jornalista e santamariense, eu devia participar daquele momento da cidade."
Desde então, Canellas se dedicou a acompanhar o caso de perto, e nunca perdeu de vista os desdobramentos das investigações. Na semana em que a tragédia completa 10 anos, ele coloca no mundo o documentário que, em cinco episódios, refaz a sucessão de acontecimentos que culminaram em mais de duas centenas de mortes, e mostra as reviravoltas de um processo judicial cujo desfecho permanece imprevisível.
"A cidade teve um momento inicial de uma onda de solidariedade, de massa mesmo, das pessoas abraçando as famílias e os sobreviventes. E, com o passar do tempo, isso começou a se tornar um incômodo, e começou a haver uma espécie de negação", conta.
Julgamento da Boate Kiss: a 'luta interminável dos familiares de vítimas'
Marcelo está falando sobre a luta interminável dos familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia, que esperam uma resposta da Justiça há 10 anos. Ao longo do tempo, o fato de eles não deixarem o assunto ser esquecido passou a incomodar outras pessoas que gostariam que a cidade seguisse em frente.
"Isso tem a ver com os tempos diferentes da percepção de perda", explica. "Quem perde tem um tempo de sofrimento, que é diferente do tempo da comoção das outras pessoas. Quanto mais o tempo passa, mais o lugar do outro fica distante. Isso foi um processo que aconteceu na cidade. Uma parte se incomoda com o sofrimento das famílias."
Por isso eu achei que devia insistir nessa história, especialmente quando esse movimento começou a ficar mais forte. Ao longo desses 10 anos, propus ao Fantástico que a gente acompanhasse os desdobramentos da tragédia. Precisamos explicitar o que aconteceu para que as pessoas consigam enxergar o lugar do outro.
Marcelo Canellas, jornalista
No documentário, Canellas traz depoimentos inéditos de familiares das vítimas e sobreviventes. O jornalista acompanha os desdobramentos do processo judicial, e como essa nova realidade imposta sobre tantas famílias mudou radicalmente inúmeras vidas.
"Como se explica que, 10 anos depois, a Justiça brasileira não tenha dado uma resposta para essas famílias? As próprias autoridades dizem que vão apurar e que os culpados vão ser punidos. Mas, depois, a Justiça utiliza uma ferramenta perversa de imposição do sofrimento às pessoas, a demora. O julgamento que levou 9 anos para acontecer acaba de ser anulado. O próprio Estado reforça essa tradição, muito brasileira, de tentar jogar as nossas dores para debaixo do tapete", desabafa.
Julgamento mais longo da história da Justiça do Rio Grande do Sul, o júri que condenou quatro pessoas foi anulado em agosto do ano passado. Para os desembargadores, o julgamento não respeitou o direito de defesa dos acusados, por questões processuais, como a realização de mais de um sorteio para a formação do júri popular. O caso aguarda agora uma nova análise da denúncia feita pela Promotoria.
Como separar o jornalista da pessoa?
Ao longo do documentário, Canellas revisita as histórias de muitas das vítimas da Kiss, e dá tempo para que as pessoas que foram envolvidas na tragédia — famílias, amigos e autoridades que trabalharam no auxílio às vítimas — mostrem que cada um daqueles números não é apenas um número.
"Eu sempre digo que o documentário, para além da história da tragédia, é uma grande história de amor, de paz, de um conjunto de pais e mães pelos seus filhos. A gente recupera as histórias das pessoas que foram protagonistas nesse processo todo. Quando você contextualiza, diz quem é e dá nome para as pessoas, você consegue fazer essa aproximação com o público, porque é uma história absolutamente universal."
Sobre separar o lado profissional do pessoal, Marcelo é direto: não consegue.
"As ligações são entrecruzadas. O Mauro Hoffman, que é um dos réus, foi meu amigo de infância. Estudei com ele todo o ensino fundamental, da primeira à oitava série. Isso acontece em uma cidade de porte médio, de 282 mil habitantes. É um morto para cada mil habitantes, praticamente impossível que exista alguém na cidade que, pelo menos indiretamente, não conheça alguém."
Talvez eu não tenha feito, ao longo de 35 anos de profissão, nada que dissesse mais a respeito de mim, que fosse mais autoral do ponto de vista da minha função de contador de história.
Ele conta também que os laços que criou com as famílias e as pessoas que conheceu ao longo da última década são inseparáveis.
"Eu constituí laços de afeto com muitos deles. Alguns são meus amigos pessoais. E a gente assume no documentário que ele parte do ponto de vista das famílias mesmo."
'Muita gente gostaria que essas famílias deixassem de incomodar'
"Ao mesmo tempo que é memória, é também conforto, porque não há nada pior do que a indiferença e do que o esquecimento", continua Marcelo.
Muita gente gostaria que essas famílias parassem, se silenciassem, deixassem de incomodar, quando a gente sabe que só se supera uma tragédia dessa dimensão quando você a reconta.
A dor da falta de respostas
Com o retorno do caso aos holofotes públicos diante da data marcante, fica a pergunta: o que há de ser feito para garantir algum conforto às famílias e aos sobreviventes, depois de um julgamento anulado sem previsão de quando uma nova data será marcada?
"Algo está muito errado nos processos de apuração dos meandros do judiciário", opina Canellas. "Não é possível isso demorar 10 anos. O documentário compara, por exemplo, o que aconteceu na boate Cromañón, em Buenos Aires, 9 anos antes. A Kiss é praticamente uma repetição do que aconteceu [lá], mas nós não só não aprendemos, como também não tomamos as providências que eles tomaram em relação à memória do que aconteceu, em relação à Justiça."
"Acho que é uma alegoria do Brasil. A história da boate Kiss ultrapassa o território geográfico e passa a ser uma espécie de retrato da maneira como o Brasil lida com uma tragédia. A velha tradição de acomodar por cima os responsáveis."
O que as famílias querem?
"O que as famílias dizem é que ninguém queria prender o prefeito, ou que os bombeiros apodrecessem na cadeia, ou que os promotores que talvez tenham participado de uma maneira questionável fossem presos. Não é nada disso. O que eles querem é que, pelo menos, essas pessoas passassem pelo escrutínio da Justiça, pudessem ser ouvidos e se defender."
Quando questionado se uma resolução do julgamento traria paz, Marcelo não titubeia:
"Não há a menor dúvida. É claro que o sofrimento de um pai que perde um filho não se esgota com uma reparação judicial. Mas a sensação de que o Estado e a sociedade dão uma resposta em relação à perda que eles tiveram conforta."
O sofrimento vai durar para sempre. Mas é sofrer duas vezes quando você não tem uma resposta.
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