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Pitty lembra início da carreira em 20 anos de estreia: 'Lidei bem mal'

Pitty prepara turnê especial pelos 20 anos de "Admirável Chip Novo" e recorda início da carreira - Bruno Fujii/Divulgação
Pitty prepara turnê especial pelos 20 anos de 'Admirável Chip Novo' e recorda início da carreira Imagem: Bruno Fujii/Divulgação

De Splash, em São Paulo

25/03/2023 04h00

Era 16 de abril de 2003, quando chegava às bancas e lojas de discos um álbum de uma então desconhecida cantora baiana, que estava muito longe do que o público do centro-sul brasileiro entendia como musicalidade da Bahia. Com guitarra, bateria, nenhuma papa na língua e à frente de uma banda formada por homens, ela geralmente usava coturnos nos pés, exibia um cabelão vermelho e se recusava a fazer playback quando era convidada para se apresentar em programas da TV aberta.

Em quase todas as entrevistas ela ouvia, cansada, a mesma pergunta: "como é fazer rock na Bahia?" Algumas vezes, dava respostas atravessadas, que esta repórter agradece por não ter sido quem ouviu.

20 anos depois, Pitty olha para trás para celebrar com reverência as duas décadas do lançamento do "Admirável Chip Novo". O disco que mudou sua carreira e deu a ela visibilidade nacional, é também símbolo de uma transição e renovação do rock nacional. Agora, a cantora se prepara para rodar o Brasil com a turnê ACNXX, que terá uma prévia em seu show no Lollapalooza 2023, neste sábado.

Hoje, ela flerta com uma sonoridade diferente daquela que entregou hits como "Máscara", "Equalize", "Teto de Vidro" e "Semana que Vem". Justamente por isso, olha para todos os degraus que galgou em sua carreira e demonstra ter muito respeito por todos eles (inclusive os que deixaram pessoas pelo caminho), e está pronta para analisar os erros e os acertos que a trouxeram até aqui.

Nascida e criada em Salvador, Pitty mudou-se para o Rio de Janeiro quando recebeu uma ligação de seu produtor musical, Rafael Ramos, depois de enviar a ele uma fita k-7 com algumas demos do que viria a ser seu primeiro álbum de estúdio. Ela acabara de deixar a banda de hardcore Inkoma, da qual era vocalista. Depois, mudou-se para São Paulo, cidade com a qual se identificou e montou residência.

De lá para cá, ela sente que muita coisa mudou na forma como o público entende sonoridades nordestinas.

"Acabei de ter uma experiência recente no Carnaval de Salvador, e comentei com a galera da cena de lá que tem alguma coisa diferente da época que eu morava", conta, em entrevista a Splash.

ACNXX - Bruno Fujii/Divulgação - Bruno Fujii/Divulgação
Pitty sai em turnê para celebrar 20 anos de seu primeiro disco, 'Admirável Chip Novo'
Imagem: Bruno Fujii/Divulgação

"Eu senti uma abertura maior, senti que as pessoas estão mais misturadas. A vida inteira, Carnaval para quem gostava de rock foi no palco do rock, que é um lugar à parte do Circuito e fica lá em Piatã. Era o nosso lugar, nosso refúgio. Mas ficava uma coisa meio 'eles lá e nós, cá'. E eu, de alguma forma, de alguns anos para cá, senti que tem outros espaços, outros ritmos. E, sinceramente, acho que isso se deve a uma demanda popular e a uma demanda também das bandas da nova cena."

Entre as bandas e os artistas da nova cena estão figuras como Larissa Luz e o próprio BaianaSystem, com quem Pitty até mesmo já gravou parcerias.

"Há muito tempo, a Margareth Menezes já tinha um bloco que chamava Mascarados, que já era desse rolê de ter o povo na rua sem corda", completa.

"Depois veio o Timbalada, e esse movimento foi crescendo a ponto de não dar mais para segurar essa demanda. Hoje, passou para o poder público, e através das verbas destinadas à cultura na cidade e no estado, é possível trazer outras atrações. E, do lado de cá, o estereótipo também foi caindo, as pessoas foram percebendo que existem outras coisas ali na Bahia, através de Maglore, da própria Larissa, do Baiana. Tem um olhar diferente."

Pitty ACN - Divulgação - Divulgação
Lançado em 2003, 'Admirável Chip Novo' tem hits como 'Máscara', 'Teto de Vidro' e 'Equalize'; na foto, a banda do disco: Peu (guitarra), Joe (baixo), Pitty (voz) e Duda (bateria)
Imagem: Divulgação

Parte desse rompimento se deve à própria visibilidade da Pitty. "Gosto de pensar que sim, e espero que sim. Quando eu comecei a tocar aqui, no Sul e no Sudeste, as pessoas tratavam o fato de eu ser nordestina como uma coisa muito estranha. Durante um tempo, eu tive que explicar e dizer: 'galera, mas é meio que existem essas pessoas e tal'. Gosto de pensar que isso também foi um incentivo para que as pessoas pudessem olhar para a Bahia além do estereótipo, com um pouco mais de profundidade."

'Seria mais fácil seguir a Bíblia do mercado'

Do "Admirável Chip Novo" à turnê PittyNando, com Nando Reis, Pitty já experimentou com o piano no duo Agridoce e abriu espaço para expandir os horizontes do que se entende como o seu estilo com álbuns como "Chiaroscuro" (2009) e "Matriz" (2019). A inquietude que faz um disco ser tão diferente do outro é natural para como ela entende sua permanência no cenário mainstream.

Ainda assim, nada vem sem esforços. A diferença de sonoridade entre um álbum e outra parte de suas referências e experiências de vida e de seu entendimento do lugar de artista.

"Eu não conseguiria fugir disso. Acho que seria até mais fácil seguir o caminho da bíblia do mercado. Você fez um bagulho, fica nele. Deu certo, fica aí. Mas eu nunca consegui achar que isso tem a ver com a arte em primeiro plano, porque o objetivo sempre foi dar um passo além na expressão, na comunicação, sabendo que isso envolve riscos. É muito mais fácil ficar no lugar onde você já sabe que é seguro, que as pessoas estão confortáveis."

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Pitty e Martin formaram duo Agridoce
Imagem: Divulgação

Embora não fuja de questionar este lugar de conforto, a artista admite que estar nele não apenas exige esforços como provoca a audiência de uma forma nem sempre confortável.

"Eu percebi que grande parte do público não queria sair do conforto do que ele já conhece. É muito confortável para a pessoa pensar naquele artista como alguém que ele já sabe [quem é]. Desconstruir isso e trazer uma nova coisa confunde. Às vezes, a pessoa fica até com raiva e se sentindo traída. Tipo assim, como assim? Mas você não é aquilo que pensei que você fosse? É como se fosse uma coisa pessoal, você não entregou o que eu esperava que você entregasse", reflete ao contar que já se sentiu neste lugar do qual tenta constantemente se esquivar.

"Eu sempre trouxe, desde cedo, para o debate e para essa relação, uma reflexão. Olha, tudo bem, vocês vão encontrar artistas assim, e está tudo certo. Mas eu não consigo. Então, se vamos nos relacionar como público e artista, a gente vai ter que estabelecer esse pacto. Eu vou dar vazão ao que eu acredito e espero que isso bata na alma e no coração de vocês. Se não for tanto assim dessa vez, ok, no próximo disco a gente se encontra."

'Estou aqui justamente para transcender'

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Antes de 'Admirável Chip Novo', Pitty cantou na banda de hardcore Inkoma e tocou bateria com a Shes
Imagem: Divulgação

Estar nas redes sociais e ter contato com o público pelos meios digitais faz com que Pitty esteja ciente desses sentimentos que vêm como consequência de sua desconstrução musical. Mesmo assim, ela rejeita qualquer obrigatoriedade de fazer algo para agradar.

Não foi para isso que comecei a escrever e a ter banda, sabe? Eu estaria sendo completamente incoerente com o meu primeiro objetivo, com a minha vontade primal. Para agradar o quê mesmo? Não acho que essa relação seria saudável em primeiro plano, e isso foi ficando claro no segundo disco, no terceiro, no quarto.

Em contrapartida, ela conta que conseguiu criar um canal de comunicação eficaz e claro com seu público.

"Hoje, eu acho que já tenho uma relação com a galera que curte meu som de verdade e que já entende isso, que às vezes gosta de uma coisa mais do que de outra, e tudo bem. A essência da onda, do que me move a escrever e a fazer, está ali. E sempre tive essa diversidade dentro de mim. Desde o Inkoma, inclusive, esse foi um dos motivos que me fez optar por seguir um caminho diferente, porque eu já queria colocar coisas diferentes. E eu encontrei, dentro do próprio nicho, um rolê bem xiita, do tipo 'se fizer isso não é mais rock. Se fizer aquilo não é...' muitas regras que não faziam sentido para mim. E eu falei, cara, não, eu estou aqui justamente para transcender, encontrar, buscar."

Eu não estou aqui para ficar presa em nenhuma caixa, seja ela do que se diz que é rock, ou seja ela do que se diz que seja qualquer outra coisa. Se eu já experimentava com tango ali no Chiaroscuro, com 'Água Contida', já existia essa vontade porque desde os 9 anos eu já escutava jazz, blues e bolero.

"As coisas também não são feitas de forma egocêntrica, no sentido de que eu só vou fazer o que eu absolutamente quero. Tento conciliar o que eu tenho de verdade naquele momento com o que eu acho que vai bater também com o inconsciente coletivo, porque acho que é uma troca, eu não estou sozinha nesse processo", completa.

"O que eu quero dizer é que o fato de eu achar que a criação vem de um lugar que não é o lugar da demanda publicitária, digamos assim, não quer dizer que eu queira isso só para mim. Eu quero compartilhar isso com as pessoas. Mas o preço não pode ser anular a criação artística."

Manual de Instruções (de como não lidar com a fama)

Quando questionada sobre como lidou com a fama, quando alçada à projeção nacional, Pitty não titubeiou ao admitir: "Lidei bem mal."

"Bem mal mesmo, mana. Primeiro porque eu venho de um lugar que eu tinha a minha banda, eu tocava no festival e depois descia para ver os outros shows com todo mundo. Eu cresci na rua. Então, de repente não poder fazer isso foi estranhésimo. E não é porque eu não queria, é porque eu não conseguia."

Pitty - Bruno Fujii/Divulgação - Bruno Fujii/Divulgação
'Eu quero compartilhar isso com as pessoas. Mas o preço não pode ser anular a criação artística', diz Pitty sobre processo de composição
Imagem: Bruno Fujii/Divulgação

Você ia no festival e às vezes não era seguro. Tem o lance de ser mulher também, já rolou várias vezes de o cerco se fechar e mãos serem passadas, aí é foda.

Pitty reflete que, no que tange à forma de lidar com assédio de fãs e da mídia, hoje ela tem um entendimento que não tinha há 20 anos.

"Eu não entendia, porque eu nunca tive isso com ninguém. Por que você não pode só conversar comigo? Por que tem que pegar algo? Eu não entendia essa coisa da posse, do toque. Com o tempo, fui percebendo e tendo muito mais empatia, e também aprendendo a me proteger e colocar os meus limites. Isso também me trouxe muitos problemas, porque não era o que as pessoas queriam escutar."

'Quem é Rimbaud, gente?'

Duas décadas é tempo o suficiente para que um público inteiramente novo entre em contato com uma obra para redescobrir seu significado. Para Pitty, esse pode ser um dos motivos que fazem seu disco de estreia ter letras tão atuais.

"Não sei lhe dizer um porquê, mas percebo isso quando as pessoas me falam. Tenho visto nas redes quando a galera comenta. Teve gente que chegou para mim, agora com essa parada dos 20 anos do Chip Novo, falando que só agora entendeu que 'O Lobo' tinha a ver com Thomas Hobbes", recorda.

"Eu acho incrível porque também já passei por isso. Lembro que, quando eu era criança e escutava 'Eduardo e Mônica', não sabia quem era Rimbaud. Quem é Rimbaud, gente? Então, acho que faz sentido. No final das contas eu estava ali muito inspirada por gênios da literatura que falam sobre tecnologia e futuro de um jeito muito sagaz. Huxley e Asimov criavam histórias de muitas coisas que existem hoje e vão existir no futuro. E elas começaram a partir da ideia de alguém dentro da arte. O carro que voa dos Jetsons a gente ainda não viu, mas eu também não achava que ía me comunicar com alguém pelo relógio, que nem o 007 fazia."

'Carne, Osso e Coração'

Na época do finado VMB, premiação da antiga MTV Brasil, Pitty foi agraciada em 2005 com o prêmio de ídolo MTV. Na época em que costumava sair da premiação carregada dos troféus de cachorro, ela fez um discurso memorável em que pedia aos fãs que se lembrassem no futuro que, se por acaso ela é um ídolo, não é um ídolo de pedra. É feita de carne, osso e coração.

Para encerrar a entrevista, decido questionar se o pedido foi realmente lembrado nos anos que se passaram desde então.

"Acho que depende da pessoa. As que tiveram boa vontade de lembrar, sim. As que não, não. Porque tudo vai também da vontade da pessoa de te acolher e de empatizar com o que você sente. E o mundo é feito de 'haters' e 'lovers'. Se a pessoa quiser tacar o hate, ela vai tacar mesmo você fazendo tudo certo. É errando, é acertando, e acho que não tendo medo de ter essa relação humana de falar o que sente e também de aceitar que a pessoa pode não querer estar perto naquele momento."

"A única coisa que importa nisso tudo é o respeito. É não ser cruel, não ser injusto e desonesto com o outro, mesmo que você não curta. Eu continuo acreditando nisso. Continua sendo carne, osso e coração. Hoje, mais carne do que osso, pra ser honesta [risos] Mas coração também. Coração cresceu e ficou mais molenga depois de ser mãe."