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'Me deixa de 4 no ato': como a ditadura usou a censura contra Rita Lee

Morre Rita Lee aos 75 anos; Rainha do Rock foi diagnosticada com câncer em 2021  - Divulgação
Morre Rita Lee aos 75 anos; Rainha do Rock foi diagnosticada com câncer em 2021 Imagem: Divulgação

Colaboração para Splash, em São Paulo

10/05/2023 10h45

Rita Lee, que nasceu para ser "padroeira da liberdade", via no substantivo "censura" o oposto da liberdade artística que inspirou toda sua trajetória e que transmitiu aos fãs em décadas de carreira.

A cantora, que morreu na última segunda (8) aos 75 anos, despontou no cenário musical brasileiro no mesmo período em que os militares impuseram um golpe de estado. E, assim como os artistas contemporâneos a ela, não passou ilesa pelos censores do regime ditatorial.

Considerada às vezes como "imprópria à boa educação do povo" e não raro como uma disseminadora dos "maus costumes", a cantora teve várias de suas composições vetadas pela censura militar. As informações constam em documentos do Arquivo Nacional.

Um dos principais sucessos de sua longeva carreira, "Lança Perfume", de 1980, foi classificado como "imprópria" por Laura Bastos, técnica da Divisão de Censura em Diversões Públicas, que enxergou na frase "Me deixa de quatro no ato" margem para "duplo sentido", ou seja, conotação sexual que, conforme a técnica, feria os bons costumes. Logo, assinalou Bastos, "opino pela não liberação da mesma".

Apesar da observação da técnica, "Lança Perfume" foi liberada. O mesmo não aconteceria três anos depois, quando os censores ditatoriais vetaram seis das 12 faixas do álbum "Bombom".

Em 1981, os militares também censuraram "As Duas Faces de Eva" devido ao trecho que alude à menstruação. "Mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra", escreveu a artista.

Em resposta, os ditadores escreveram: "[A canção] poderá também referir-se ao ciclo menstrual da mulher, o que suscitará indagações precoces em torno do assunto". Posteriormente, a canção foi lançada e se tornou um de seus maiores sucessos.

Ao falar sobre as censuras sofridas, Rita afirmava que suas composições eram feitas daquilo que "lhe dava na telha".

Nunca pensei que o que fiz durante 50 anos fosse o que se chama feminismo: eu ligava o foda-se e entrava decidida no mundinho considerado masculino, cantando sobre o que me desse na telha; de menstruação a menopausa, de trepada a orgasmo. Fora o resto, Rita Lee, ao jornal O Estado de S. Paulo

rita lee - Reprodução - Reprodução
Documentos do Arquivo Nacional mostram censuras impostas pela ditadura à Rita Lee
Imagem: Reprodução

Prisão

Além da censura em seus trabalhos, Rita Lee chegou a ser presa em 1976, quando estava grávida do primeiro filho, Beto Lee. Na época, o Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) disse que a artista tinha drogas em casa, o que ela negou, e atribuiu a prisão ao fato de os militares não irem com sua cara. Aliás, ela afirmou que foi a própria polícia quem "plantou" a maconha para incriminá-la.

"Me botaram sentada frente ao delegado e sobre a mesa dele uma pilha de cannabis já dexavadinha, pronta para enrolar. Erva de ótima qualidade, aliás. 'A senhora tem algo a dizer sobre isto aqui que meus homens encontraram na sua residência?'. 'Isso não é meu, seu delegado. Estou grávida e no momento não uso drogas. Nem Coca-Cola, pro senhor ter uma ideia. Eu vi quando seus homens colocaram isso na minha casa, pode perguntar para minha madrinha que também estava lá", escreveu em sua biografia lançada em 2016.

Do período em que esteve presa, surgiu uma amizade com a cantora Elis Regina (1945-1982), que foi visitá-la na cadeia. Nas palavras da própria Rita, Elis não era "uma pessoa de interesse" da ditadura.

"Elis não representava uma person of interest da ditadura, ao contrário, era reconhecida como a rainha do Olimpo musical e nenhum generaleco se atreveria a mexer com ela. Ficou lá de plantão até eu ser medicada e o sangramento estancado. Ainda mandou vir comidinha de um restaurante porque me achou magrela demais para uma grávida", relatou na biografia.

À revista Claudia, em 2020, Rita Lee declarou. "Na minha época de pré-juventude, uma mulher artista era considerada puta. Agora, imagine eu cantando 'me deixa de quatro no ato e me enche de amor' e 'mulher é bicho esquisito, todo mês sangra'. Os meganhas tinham uma lista de artistas 'perigosos' e entre eles lá estava eu, para orgulho do meu currículo. Se há alguma característica minha desde criança, além da defesa animal, é o prazer em desacatar autoridades (risos). Eu representava uma mulher que ousava contra os 'bons costumes da família brasileira'".