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OPINIÃO

Rita Lee odiava se ouvir, mas fez 'voz pequena' falar alto

Show de Rita Lee no Vale do Anhangabaú, no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 2013 - Alessandro Shinoda/Folhapress
Show de Rita Lee no Vale do Anhangabaú, no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 2013 Imagem: Alessandro Shinoda/Folhapress

Sérgio Martins

Colaboração para Splash

11/05/2023 14h39

Rita Lee não gostava de se ouvir, embora milhares façam isso diariamente e irão continuar a fazer mesmo após a sua morte, na segunda-feira (8), aos 75 anos. Em sua autobiografia, lançada em 2016, fez pouco caso da própria voz.

"Sempre soube da minha voz fraquinha e meio desafinada, sem potência alguma. Cantar nunca foi natural pra mim, dos passarinhos eu sou o pardal. Para encorpar mais a voz nos discos, eu apelava às dobras, ou até 'trobas', o que limitava a interpretação, uma vez que eu tinha que decorar como cantei no primeiro canal para me dobrar exatamente igual em outro. Não existia Pro Tools, voz e vocais tinham que ter precisão cirúrgica ou ficavam frouxos. Está explicado por que não consigo ouvir nenhum disco meu."

Tecnicamente falando, Rita tinha o que se convencionou chamar no mundo da música de "voz pequena", nome dado ao seu registro vocal, de pouco alcance porém afinado. Não deixa de ser uma ironia, dado o grande impacto da sua mensagem na vida brasileira.

Seu estilo seria processado e utilizado por artistas como Paula Toller e Fernanda Takai. Canções como "Meu Refrigerador Não Funciona", onde dá uivos dignos de Janis Joplin, e em parceria com Tom Zé, trazem muito das visões musicais da vocalista.

A rotina intensa forçava a voz de Rita. "De tanto berrar nos shows, minha voz, sempre micra, competia corajosamente com os eletrônicos no volume máximo, o que me deixava rouca dia sim, dia também", conta, em outra passagem da obra, no capítulo "Nas cordas bambas". Em dado momento, precisou de uma operação após um cirurgião dizer que precisaria cortar uma parte das cordas vocais, o que afetaria seus agudos. Por um mês, precisou ficar em silêncio total.

"Para mim não foi sacrifício ficar muda por um mês, ao contrário, serviu para perceber quantas bobagens a gente ouve e deixa de falar. Aliás, isso até me ajudou a compor uma música harmonicamente mais elaborada que se chamava 'Modinha'. Realmente perdi os agudos, mas para quem também não tinha nem médios nem graves na voz, não fez diferença"

Que bom que Rita não se calou.

Quando "empoderamento" era apenas uma palavra que ainda não estava na moda, ela já era ovelha negra da família, botava a boca no mundo feito tico-tico quando queria comer e namorava aquele tal de roque enrow.

Quando falar de sexo em letra de música era passível de repressão por parte da temida censuradora Dona Solange Hernandes, Rita falou em imaginar loucuras ao lado do parceiro e ficar de quatro no ato.

Para quem a conheceu nas últimas duas décadas, a cantora paulistana era uma daquelas tias engraçadas que toda família tem, onde a aparente fragilidade física era acompanhada por uma mente ágil e moderna. Mas para as pessoas da minha idade - tenho 56 - ela foi um antídoto contra a caretice reinante. Uma caretice, aliás, que voltou como nunca nos últimos anos.

Rita Lee Jones nasceu em 31 de dezembro de 1947 e floresceu num período em que roqueiro brasileiro tinha cara de mau e roqueira local era Celly Campelo, a rebelde que largou tudo para ser dona de casa. Influenciada por bandas como Beatles, integrou os Mutantes ao lado de Arnaldo e Sérgio Dias Baptista.

Nos grupos pop dos anos 60, às mulheres, quando elas conseguiam fazer parte, era reservado um papel decorativo. Rita Lee não se conformou com isso. Nos Mutantes, embora Arnaldo e Sérgio tivessem bom controle sobre a direção musical, ela teve raro peso para formulação da identidade do grupo.

Os Mutantes eram uma banda muito antenada com a moda e isso vem de Rita Lee, que sabia como poucas se apresentar como representante de suas ideias. Não podemos nos esquecer do vestido de noiva que que usou no Festival da Record, de 1967, onde ela, Arnaldo e Sérgio acompanharam Gilberto Gil em "Domingo no Parque".

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As músicas da vocalista combinam irreverência e um humor corrosivo que conversava com o virtuosismo dos Baptista, uma atitude ousada e desafiadora para a época. Chegou a rasgar o documento de sua união com Arnaldo no programa de Hebe Camargo em 1972 (curiosamente, em 1996, se casou formalmente com Roberto de Carvalho, seu companheiro de mais de três décadas num período em que o casamento com papelada e tudo nem era tão necessário).

O Tutti Frutti, conjunto ao qual se uniu após a demissão dos Mutantes - ela foi acusada de não ter o virtuosismo necessário aos novos compromissos estilísticos dos Baptista - mostrou outra colaboração de Rita para os tempos atuais. Rita assumiu a persona de bandleader, figura de destaque em meio a uma turma de roqueiros "com cara de bandido", como classificou certa feita na canção "Orra Meu". Figuras como Pitty e Érika Martins, do Autoramas, certamente se inspiram nessa atitude de Rita para estarem no comando de seus grupos.

Os órgãos de repressão, como sempre, quiseram "dar uma lição" a uma figura tão provocativa: em 1977, grávida de Beto, seu primogênito, foi levada para a cadeia, sob a acusação de portar drogas. Numa entrevista, Rita lembrou de ser saudada pelas presidiárias com os versos de Ovelha Negra.

A união emocional e musical com o guitarrista e pianista Roberto de Carvalho, em 1976, lhe rendeu a aura de maior popstar do país. A principal transgressão, dessa vez, era mostrar que uma roqueira poderia conversar com todas as idades e nem sempre o rock'n'roll é sinônimo de uma relação turbulenta.

A acessibilidade do pop a fez ser ouvida por pessoas que até então não tinham entrado em seu radar. Caso de uma senhora de Belo Horizonte, que decidiu levar a amiga das filhas para uma apresentação da turnê Saúde, em 1982. O nome da convidada? Uma tal de Fernanda Takai.

Posteriormente à fase popstar, Rita Lee releu a bossa nova, o cancioneiro dos Beatles e fez parcerias inusitadas com Arnaldo Jabor e Moacyr Franco. Consciente da sua inestimável colaboração para o nosso universo, abandonou os palcos em 2012 e se dedicou à literatura e aos animais. Mas enquanto esteve viva e cheia de graça, fez um monte de gente feliz.

Rita Lee deixou o marido Roberto de Carvalho, três filhos, dois netos e uma legião de fãs.