A intimidade de Gugu Liberato vem sendo exposta de forma grotesca. Ao longo dos últimos anos, sob os mais variados pretextos, teve quem decidiu "tirá-lo do armário" com a pretensão de protagonizar "um marco no jornalismo brasileiro", tentar comprovar uma suposta união estável ou até mesmo satisfazer o próprio sadismo recreativo.
A sexualidade do apresentador, que até então estava restrita a um padrão heteronormativo construído e controlado com a ajuda da revista Caras, parece ter virado domínio público desde a sua morte, em novembro de 2019. A sensação é de que todo mundo passou a acreditar que tem o direito de falar da vida íntima do comunicador, embora o próprio nunca tenha dito uma única palavra sobre ser gay (pelo menos não publicamente).
Mas, ainda assim, Gugu foi arrancado à força de um suposto armário. As primeiras linhas após a morte trágica do apresentador sobre um possível namorado foram escritas e publicadas pelo jornal O Estado de S.Paulo em fevereiro de 2020. O texto dava conta de que o chef de cozinha Thiago Salvático havia entrado na disputa pela herança — ação da qual desistiria tempos depois. Hoje, ele briga pelo reconhecimento da união estável.
Semanas depois, com o questionamento "Por que a imprensa brasileira tem tanto medo de falar abertamente que o Gugu era gay?", o colunista Leo Dias defendeu a necessidade de "desconstruir a ilusão que Gugu criou para estar na TV" e que o Brasil parasse "de viver essa mentira". À época, o texto dividiu opiniões e provocou debates nas redes sociais.
Desde que a vida íntima do apresentador foi colocada em discussão, porém, uma coisa não sai da minha cabeça: o quanto tudo isso é violento. Eu sou um homem gay e sair do armário talvez tenha sido uma das coisas mais difíceis da minha vida. Embora não seja famoso, entretanto, é impossível não me identificar com tamanha exposição forçada e pensar nos caminhos que cada indivíduo precisa percorrer para simplesmente ser quem é.
Como Gugu, dada as devidas proporções, a minha sexualidade foi exposta involuntariamente algumas vezes. Assim como a de tantos outros. Em um dos episódios, sem qualquer cuidado ou preocupação, uma ex-colega de trabalho disse à equipe: "O Ricardo é gay. Vamos parar de fingir. Todo mundo sabe". Eu não sabia o que fazer ou dizer. Fiquei paralisado, em silêncio absoluto, esperando a hora de chegar em casa para poder chorar sozinho.
Mas a quem é dado o direito de tirar alguém do armário? Ninguém! A quem cabe julgar os motivos que levam alguém a permanecer dentro dele? No Brasil, vale lembrar, um LGBT é assassinado a cada 32 horas, segundo dados do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ 2022. Isso sem falar dos dados subnotificados perdidos na ausência de levantamentos governamentais e nas estruturas sociais construídas sob o machismo.
Sair do armário nem sempre é uma decisão simples, ainda que o mundo tenha mudado bastante desde que Gugu alcançou o auge da carreira na década de 1990. O apresentador era um dos símbolos do domingo na televisão e falava diretamente com a "família tradicional brasileira" — e com toda a hipocrisia que isso pode representar. Era a cara de uma das linhas de brinquedos mais desejadas pelas crianças da época. Era um produto.
Mas quem era Antônio Augusto Moraes Liberato no silêncio de casa? Com quem ele compartilhava os medos e inseguranças sobre si mesmo? O relacionamento com Rose Miriam existiu de fato? A sexualidade era um assunto possível entre os familiares? Quais seriam as consequências de assumir uma suposta homossexualidade? O que ele queria que fosse compartilhado com o público? É impossível saber de fato. A gente nunca tem certeza sobre como é a vida das pessoas quando elas estão sozinhas, longe de tudo e todos.
O que eu sei com alguma propriedade é que não é fácil. Eu precisei de 25 anos para verbalizar pela primeira vez quem eu sou, 27 para contar para a minha família, e quase 30 para empurrar de vez a porta do armário. Tudo isso depois de uma crise de pânico, sessões de terapia e muito medo de não ser aceito por aqueles que me são mais caros.
Apesar de tudo isso, Gugu e eu ainda somos dois privilegiados. Quando se é negro e pobre o processo ganha camadas ainda mais complexas (e difíceis). Sem falar ainda de quem é expulso de casa. Por isso é preciso falar, entender e combater essas estruturas. De acordo com uma pesquisa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), de 2020, do total de notificações de violência contra a população LGBT brasileira, metade das agressões tinham pessoas negras como alvo.
No início do mês, diante da suposta existência de um vídeo íntimo do comunicador com o chef Thiago Salvático, as redes sociais voltaram a ser inundadas por "piadas" e publicações homofóbicas. Como um exercício de sadismo recreativo, as pessoas se sentiram novamente no direito de se apossar da sexualidade do apresentador e escrever barbaridades. E para elas pouco importa se ele está morto.
Gugu é fruto de uma outra televisão, que reservava aos gays lugares caricatos e estereotipados. Sejamos sinceros: ele teria experimentado o sucesso que alcançou caso fosse um homossexual assumido nos anos 1990? Provavelmente não. Hoje, ainda que a TV dê alguns passos para trás quando decide vetar um beijo gay, por exemplo, o cenário é outro. Basta observar a quantidade de galãs que vivem livremente a própria sexualidade. Mas a realidade não é igual para todo mundo.
Gugu era gay? Eu não sei. Só sei que ele foi quem conseguiu ser.
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