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OPINIÃO

Gugu era gay? Sexualidade do apresentador é exposta de forma grotesca

De Splash, em São Paulo

23/06/2023 04h00

A intimidade de Gugu Liberato vem sendo exposta de forma grotesca. Ao longo dos últimos anos, sob os mais variados pretextos, teve quem decidiu "tirá-lo do armário" com a pretensão de protagonizar "um marco no jornalismo brasileiro", tentar comprovar uma suposta união estável ou até mesmo satisfazer o próprio sadismo recreativo.

A sexualidade do apresentador, que até então estava restrita a um padrão heteronormativo construído e controlado com a ajuda da revista Caras, parece ter virado domínio público desde a sua morte, em novembro de 2019. A sensação é de que todo mundo passou a acreditar que tem o direito de falar da vida íntima do comunicador, embora o próprio nunca tenha dito uma única palavra sobre ser gay (pelo menos não publicamente).

Mas, ainda assim, Gugu foi arrancado à força de um suposto armário. As primeiras linhas após a morte trágica do apresentador sobre um possível namorado foram escritas e publicadas pelo jornal O Estado de S.Paulo em fevereiro de 2020. O texto dava conta de que o chef de cozinha Thiago Salvático havia entrado na disputa pela herança — ação da qual desistiria tempos depois. Hoje, ele briga pelo reconhecimento da união estável.

Semanas depois, com o questionamento "Por que a imprensa brasileira tem tanto medo de falar abertamente que o Gugu era gay?", o colunista Leo Dias defendeu a necessidade de "desconstruir a ilusão que Gugu criou para estar na TV" e que o Brasil parasse "de viver essa mentira". À época, o texto dividiu opiniões e provocou debates nas redes sociais.

Desde que a vida íntima do apresentador foi colocada em discussão, porém, uma coisa não sai da minha cabeça: o quanto tudo isso é violento. Eu sou um homem gay e sair do armário talvez tenha sido uma das coisas mais difíceis da minha vida. Embora não seja famoso, entretanto, é impossível não me identificar com tamanha exposição forçada e pensar nos caminhos que cada indivíduo precisa percorrer para simplesmente ser quem é.

Como Gugu, dada as devidas proporções, a minha sexualidade foi exposta involuntariamente algumas vezes. Assim como a de tantos outros. Em um dos episódios, sem qualquer cuidado ou preocupação, uma ex-colega de trabalho disse à equipe: "O Ricardo é gay. Vamos parar de fingir. Todo mundo sabe". Eu não sabia o que fazer ou dizer. Fiquei paralisado, em silêncio absoluto, esperando a hora de chegar em casa para poder chorar sozinho.

Mas a quem é dado o direito de tirar alguém do armário? Ninguém! A quem cabe julgar os motivos que levam alguém a permanecer dentro dele? No Brasil, vale lembrar, um LGBT é assassinado a cada 32 horas, segundo dados do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ 2022. Isso sem falar dos dados subnotificados perdidos na ausência de levantamentos governamentais e nas estruturas sociais construídas sob o machismo.

Sair do armário nem sempre é uma decisão simples, ainda que o mundo tenha mudado bastante desde que Gugu alcançou o auge da carreira na década de 1990. O apresentador era um dos símbolos do domingo na televisão e falava diretamente com a "família tradicional brasileira" — e com toda a hipocrisia que isso pode representar. Era a cara de uma das linhas de brinquedos mais desejadas pelas crianças da época. Era um produto.

Gugu Liberato  - Detinho Oliveira /SBT - Detinho Oliveira /SBT
Gugu Liberato no Viva a Noite em 1983
Imagem: Detinho Oliveira /SBT

Mas quem era Antônio Augusto Moraes Liberato no silêncio de casa? Com quem ele compartilhava os medos e inseguranças sobre si mesmo? O relacionamento com Rose Miriam existiu de fato? A sexualidade era um assunto possível entre os familiares? Quais seriam as consequências de assumir uma suposta homossexualidade? O que ele queria que fosse compartilhado com o público? É impossível saber de fato. A gente nunca tem certeza sobre como é a vida das pessoas quando elas estão sozinhas, longe de tudo e todos.

O que eu sei com alguma propriedade é que não é fácil. Eu precisei de 25 anos para verbalizar pela primeira vez quem eu sou, 27 para contar para a minha família, e quase 30 para empurrar de vez a porta do armário. Tudo isso depois de uma crise de pânico, sessões de terapia e muito medo de não ser aceito por aqueles que me são mais caros.

Apesar de tudo isso, Gugu e eu ainda somos dois privilegiados. Quando se é negro e pobre o processo ganha camadas ainda mais complexas (e difíceis). Sem falar ainda de quem é expulso de casa. Por isso é preciso falar, entender e combater essas estruturas. De acordo com uma pesquisa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), de 2020, do total de notificações de violência contra a população LGBT brasileira, metade das agressões tinham pessoas negras como alvo.

No início do mês, diante da suposta existência de um vídeo íntimo do comunicador com o chef Thiago Salvático, as redes sociais voltaram a ser inundadas por "piadas" e publicações homofóbicas. Como um exercício de sadismo recreativo, as pessoas se sentiram novamente no direito de se apossar da sexualidade do apresentador e escrever barbaridades. E para elas pouco importa se ele está morto.

Gugu é fruto de uma outra televisão, que reservava aos gays lugares caricatos e estereotipados. Sejamos sinceros: ele teria experimentado o sucesso que alcançou caso fosse um homossexual assumido nos anos 1990? Provavelmente não. Hoje, ainda que a TV dê alguns passos para trás quando decide vetar um beijo gay, por exemplo, o cenário é outro. Basta observar a quantidade de galãs que vivem livremente a própria sexualidade. Mas a realidade não é igual para todo mundo.

Gugu era gay? Eu não sei. Só sei que ele foi quem conseguiu ser.