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OPINIÃO

Com morte de João Donato, cena que criou a Bossa Nova se despede

Editor de Opinião

17/07/2023 11h28

Apesar de a Bossa Nova ter reconhecido a influência de João Donato na sua formação, ele mesmo teve uma carreira que correu caminho paralelo, a ponto de, em entrevistas já neste século, ter dito que não se considerava parte do movimento.

Donato tinha razão. Quando o amor, o sorriso e flor ganharam tração no Rio, ele estava em São Paulo e, em seguida, nos Estados Unidos, onde exercitava com naturalidade o jazz da Costa Oeste e a música caribenha que havia chegado aos seus ouvidos ainda infantis, no Acre, e que nunca deixou de temperar o seu som. Tocou com Cal Tjader, Tito Puente, Mongo Santamaria, expoentes do Latin Jazz.

Mas a Bossa Nova também tinha. Afinal, o acordeonista/pianista, ainda adolescente, havia participado ativamente da gestação do movimento, contribuindo com a sofisticação noturna do samba-canção (chegou a namorar Dolores Duran) e as experimentações das jam sessions que varavam madrugadas. Foi um dos poucos interlocutores reais de João Gilberto, com quem, segundo Ruy Castro, trocava longos silêncios. Falavam música.

Mas, diferentemente de seu parceiro espiritual, com quem guardava até certa semelhança física, nunca se esquivou do jazz. Sua carreira norte-americana esteve sempre ligada ao gênero. Chegou a gravar pelo mítico selo CTI, de John Creed, no qual tinha colegas como George Benson, Wes Montgomery, Freddie Hubbard e conterrâneos como Tom Jobim, Eumir Deodato e Astrud Gilberto.

Suas composições são únicas. Muitas vezes, partem de células que vão se modificando a cada repetição, sem jamais perder a lógica interna, escondendo complexidades em um efeito simples, cantarolável. Servem de fonte para longas improvisações. Assim são "A Rã" (ou "The Frog"), que ganhou letra de Caetano Veloso, "A Bruxa de Mentira", "Bananeira", "A Paz" (as três com Gilberto Gil), "Amazonas".

Donato gravou discos seminais do samba jazz ("Muito à Vontade", "A Bossa Moderna de João Donato"), de jazz fusion ("A Bad Donato", "Donato/Deodato") e de MPB ("Quem é Quem", "Lugar Comum"). Nestes últimos, mostrou um jeito calmo, até preguiçoso, de cantar, que encaixava perfeitamente na sua música e nos arranjos, uma carícia no ouvido.

Outro músico brasileiro com quem talvez possa ser comparado é Hermeto Pascoal. Donato também tinha o talento de ver música em tudo. Já era compositor na infância (começou com a valsa "Nini", aos oito anos). Transformava sons da floresta, dos barcos, das ruas em melodias, às quais dava seu sofisticado acabamento harmônico. É um bom exemplo a entrevista/jam session com o guitarrista Nelson Faria no programa Um Café Lá em Casa.

Embora a excentricidade também fosse uma característica que compartilhava com João Gilberto, sua personalidade sempre foi mais solar, e isso se refletia na sua música. Mesmo quando tingida de melancolia, como em "Até Quem Sabe", Donato estava do lado da leveza. Nesse aspecto, Donato jogava no time de Jorge Benjor e Martinho da Vila. Sem Donato, a Bossa Nova se despede da cena que a criou e o Brasil fica mais distante daquilo que por muito tempo acreditamos ser nossa personalidade. Entristecemos.