Solidão e machismo: como Isis Valverde sentiu as dores de Ângela Diniz
No dia 30 de dezembro de 1976, a socialite Ângela Diniz foi assassinada a tiros por seu namorado, Raul Fernando do Amaral Street, em uma casa na Praia dos Ossos, em Armação dos Búzios, município da região dos Lagos do Rio de Janeiro.
Em uma época em que o termo "feminicídio" estava longe de existir, o assassino foi abraçado pela população e defendido em tribunal com a tese da "legítima defesa da honra". Recuperado à excelência no podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, o caso agora ganha as telas de cinema, estrelado por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes.
A trama acompanha os últimos meses de vida de Ângela, do momento em que ela conheceu o assassino, o Doca, aos fatídicos tiros que lhe tiraram a vida, mostrando a espiral de isolamento no qual a vítima teria entrado sem conseguir se salvar ou pedir ajuda.
"Acho muito importante, não só pela história de Ângela, mas obviamente [por ela], que foi a primeira mulher reconhecida como vítima do feminicídio", reflete Isis Valverde em entrevista exclusiva a Splash, sobre a pontualidade do lançamento da obra.
Mas, para a atriz, o filme vai além da história de uma única pessoa e retrata uma luta diária e universal.O filme de fato chega em um momento oportuno.
O argumento usado pela defesa de Doca em seu primeiro julgamento, da legítima defesa da honra, foi considerado inconstitucional pelo Superior Tribunal Federal (STF) no início do mês, depois de já ter sido muito usado pela defesa em crimes de feminicídio e agressões contra mulheres, para justificar o comportamento do agressor.
"Ela era uma mulher branca, privilegiada, da alta sociedade. Isso bate no lugar que incomoda [a sociedade], em que alguém tem que fazer alguma coisa. Mas esse filme é só mais uma parte desse caminho longo que a gente cava, abrindo todos os dias as portas para mudança", continua Isis.
É necessário falar sobre isso, botar essa luz sobre o assunto sempre, porque todos os dias a gente bate nas mesmas teclas, e a gente cansa, a gente chora, a gente sente.
Isis Valverde sobre a violência contra a mulher retratada em "Angela"
Claustrofobia intencional
Diante da imensidão de fatos e detalhes sobre a história de Ângela Diniz e o julgamento de Doca, o filme dirigido por Hugo Prata e escrito por Duda de Almeida escolhe se trancar na casa de praia em Búzios e mergulhar com o então casal nas crises, brigas e frequentes explosões de Raul.
O filme se debruça sobre uma relação simbiótica e incômoda entre violência e sexo. No Festival de Gramado, Hugo Prata defendeu que as cenas, embaladas por ritmos musicais frenéticos, "são rock'n roll, como a ligação deles".
A Splash, ele explica de onde partiu a decisão de olhar para a história a partir deste ângulo. "A gente percebeu que essa história foi, até hoje, sempre contada a partir da estratégia do advogado de defesa do assassino", conta, recordando o ato final do criminalista Evandro Lins e Silva. "Reverberou mesmo depois de [a tese] ter sido desconstruída judicialmente e [Doca] ter sido preso."
"Chamava a atenção que, toda vez que alguém vai falar da morte dela, falava da vida dela, onde nasceu, a família, o casamento aos 17 anos, o desquite...", exemplifica. "Era comum desconstruir isso para dizer que ela mereceu — e ainda é."
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Quero receberA nós isso não interessou. Ela era uma mulher que tinha o direito de ser o que ela quisesse. Tem essa frase da mãe dela em um vídeo emocionante, indignada no fim do julgamento. Não nos interessa o que ela fez. O fato é que ela conheceu esse cara em agosto e em dezembro ele a matou.
Hugo Prata, diretor, sobre o recorte temporal de 'Ângela'
Diante de uma linha temporal de cerca de quatro meses, o desafio do roteiro era colocar ali todas as nuances de personalidade de Ângela, missão que Duda assumiu de braços abertos. Ele explica que partiu de situações reais pelas quais a socialite passava, como o período tenso com o ex-marido, por ser acusada de sequestrar a própria filha.
"Isso foi me ajudando a construir o estado emocional de uma mulher que estava muito fragilizada e exausta de ter que lutar contra tudo aquilo, exausta do que a mídia falava dela. Entendemos que ela tinha desejo de estar junto aos filhos, ao mesmo tempo em que isso não era possível. Isso criou um coração, uma humanidade e uma dignidade para essa mulher. Quanto a personagem começou a tecer seus próprios diálogos, percebemos que ela queria falar.
Duda de Almeida, roteirista, sobre dar voz às angústias de Ângela Diniz
As solidões de Isis e Ângela
Durante a conversa, os três entrevistados e esta repórter tinham à sua frente pranchetas com folhas de papel em branco, para eventuais anotações. A de Isis era a única que estava sendo usada.
Em determinados momentos, a atriz abaixava a cabeça e começava a rabiscar desenhos, e a impressão inicial, para algum desavisado, poderia ser de um desinteresse. Mas bastava olhar com mais atenção para entender que era justamente o oposto.
A sobriedade na voz de Isis, quase hipnótica, mostrava o tamanho de seu comprometimento com a história e seu entendimento da importância de se falar sobre as lutas feministas. O interesse no papel era talvez uma forma de se concentrar.
Ocasionalmente, ela fazia observações pertinentes entre as respostas de seus colegas, e até mesmo se mostrou indignada com o circo no qual se transformou o julgamento de Doca. "As pessoas gritavam lá de fora, você já viu o vídeo? É uma coisa pavorosa, assim, horrorosa", desabafou.
A atriz não se intimidou ao ser questionada sobre suas próprias formas de se conectar a Ângela Diniz. Em Gramado, ela havia adiantado que "sentiu a solidão" da socialite mineira.
"Todas temos ancestrais femininas que a gente encontra em algum lugar. Não é só a solidão [da mulher] daquela sociedade. Antes era muito mais escancarado. Hoje continua existindo, mas muito mais velado. Mas outras coisas me levaram ao encontro dessa mulher. Passei por um período muito forte de algumas perdas na minha vida, e acho que a morte traz uma solidão e uma impotência, por não conseguirmos impedi-la", inicia.
"Perdi uma pessoa que eu amava muito, que era o meu pai. Óbvio que não tem nada a ver com ser agredida da forma que ela foi. Sou agredida de outras formas também, por homens, na nossa sociedade. Passo por situações de machismo também. Então, isso nos aproximou muito."
Mesmo que você fale, que você reaja, às vezes você cede e passam por cima. Viver isso até hoje é muito solitário para todas nós. Mesmo que a gente dê as mãos, é muito doído. A agressão é um funil. Você começa por cima e vai afundando.
Isis Valverde sobre a solidão das mulheres e se conectar com Ângela Diniz
'Ângela' chega aos cinemas em 7 de setembro.
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