Livros no Centro: Aposentado, coveiro filósofo escreve livro de memórias
Mais conhecido como Fininho, o carioca Osmair Camargo Cândido trabalhou por mais de 30 anos sepultando corpos na cidade de São Paulo: passou pelos cemitérios Cachoeirinha, Perus, Quarta Parada e pelo Araçá, na região da Consolação, posto em que prestou serviços por mais tempo.
Enquanto sepultava ou exumava cadáveres, estudou alemão, fez graduação em filosofia, publicou artigo em jornal, deu entrevista e escreveu um livro de memórias, que deve sair no ano que vem pela editora Fósforo.
A história de Fininho e de seu contato direto com a "Indesejada das Gentes" (como define a morte Manuel Bandeira no poema "Consoada", do qual tomamos um verso emprestado para dar título a este episódio) é o fio condutor de "- Alô, iniludível!", o quarto episódio do podcast Livros no Centro, uma produção da Livraria Megafauna com distribuição do UOL (você pode ouvir o programa completo no arquivo acima).
Carioca radicado em São Paulo desde pequeno, ele teve muitas profissões e trabalhou em tudo quanto é lugar: fez faxina, foi carregador, prestou serviços em gráfica, em cartório. Virou coveiro e também professor, primeiro em um cursinho comunitário, depois na Associação Nacional de Necrópsia.
Leitor voraz — e profundo conhecedor da obra de Machado de Assis e Lima Barreto —, decidiu estudar filosofia por causa da obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900). "Nietzsche me acorda todos os dias, fala assim: 'Ô, mané, ó, é com você!' Aí tomei gosto", ele conta a partir de 02:59.
Mesmo na dureza da rotina de enterrar corpos e com o preconceito que as pessoas têm com quem trabalha no serviço funerário, em vez de embrutecer, Fininho se tornou alguém ainda mais sensível. "Quando você sepulta uma pessoa, você não sepulta só a pessoa, você sepulta o sonho de quem tinha prazer com aquela existência. E isso entrou dentro de mim", diz a partir de 13:20.
Ele esteve na linha de frente da pandemia de covid-19. Se a experiência do confinamento e da iminência da morte foi uma experiência brutal para a maioria das pessoas, para ele enterrar tantas vítimas representou um dos períodos mais difíceis da sua vida. "A gente sepultou 421 no dia 20 de março de 2021. Foi um recorde. Recorde mundial. Não ganhei nem um obrigado", relembra (ouça em 14:07).
Além de ter que lidar diariamente com a tragédia e a sobrecarga, Fininho vivia amedrontado com a possibilidade do contágio numa época ainda sem vacina. Ele conta que os coveiros chegaram a trabalhar três meses direto, sem folga, às vezes em turnos de 18 horas. Tinha dia que nem voltava para casa e passava a noite no cemitério.
Se a morte em geral é um assunto tabu que as pessoas costumam evitar, o trabalho como coveiro é invisibilizado, ou pior, desprezado. Fininho explica que há muito preconceito em torno da profissão: "Coveiro tem fama de larápio, de bêbado, de ladrão. Você já namorou algum coveiro? E você? Sua amiga, tua irmã, tua mãe, tua tia? Ninguém, né? Todo mundo quer o sucesso. E o coveiro, ele lida com aquilo que ninguém quer mais", diz (ouça a partir de 26:57).
Fininho conta que quer morrer rápido — baleado, esfaqueado, se jogando de um prédio —, que não quer ficar doente, morrendo aos poucos. No epitáfio, ele diz que quer que esteja escrito: "Morreu de saco cheio", diz, aos risos, em 30:04.
Fininho conta essas e outras histórias no episódio "- Alô, iniludível!" do podcast Livros no Centro, apresentado pela Rita Palmeira, curadora da livraria Megafauna, e por Flávia Santos, livreira e coordenadora da loja. O livreiro Melvim Brito também participa deste episódio.
Você pode ouvir o podcast quinzenal —publicado sempre às quartas-feiras— em Splash, no YouTube, no Spotify ou em sua plataforma de áudio favorita.
Lista de livros citados no episódio 4:
"Os Escravos", Castro Alves (L&PM)
"As Horas Nuas", Lygia Fagundes Telles (Companhia das Letras)
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis (Autêntica)
"Todos os Contos de Machado de Assis", Machado de Assis (Nova Fronteira)
"A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca", William Shakespeare (Ubu, trad. Bruna Beber)
"Risque Esta Palavra", Ana Martins Marques (Companhia das Letras)
"O Brilho do Bronze", Boris Fausto (Sesi-SP Editora)
"Vida, Morte e Outros Detalhes", Boris Fausto (Companhia das Letras)
"Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente", Lourenço Mutarelli (Quadrinhos na Cia.)
"A Morte é uma Festa", João José Reis (Companhia das Letras)
"Dissoluções do como", Flávia Santos (Demônio Negro)
"O Ano do Pensamento Mágico", Joan Didion (Harper Collins, trad. Marina Vargas)
"Lili", Noemi Jaffe (Companhia das Letras)
"Mãe", Hugo Gonçalves (Companhia das Letras)
"Diário de luto", Roland Barthes (WMF, trad. Leyla Perrone-Moisés)
"O Pai da Menina Morta", Tiago Ferro (Todavia)
"O seu Terrível Abraço", Tiago Ferro (Todavia)
"Aos Prantos no Mercado", Michelle Zauner (Fósforo, trad. Ana Ban)
"Arrabalde: Em Busca da Amazônia", João Moreira Salles (Companhia das Letras)
"Sobre Aquilo em que Eu Mais Penso", Anne Carson (Editora 34, org. Sofia Nestrovski e Danilo Hora; trad. Sofia Nestrovski)
"Autobiografia do Vermelho", Anne Carson (Editora 34, trad. Ismar Tirelli Neto)
"A Mais Recôndita Memória dos Homens", Mohamed Mbougar Sarr (Fósforo, trad. Diogo Cardoso)
"Garotas em Tempos Suspensos", Tamara Kamenszain (Círculo de Poemas, trad. Paloma Vidal)
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