20 anos depois, 'Cidade de Deus' quer mostrar beleza e potência da favela
Quem ouve a frase "Dadinho é o caral**" provavelmente reconhece de imediato sua origem. Lançado em 2002, "Cidade de Deus" tornou-se um divisor de águas para o cinema nacional moderno. Mais de duas décadas depois,uma série chega com novos pontos de vista para mostrar os lados da favela que o filme não abordou.
Isso não significa que não haja continuidade entre um projeto e outro. "Cidade de Deus: A Série" se passa 20 anos após o filme, nos anos 2000. Sem Zé Pequeno (Leandro Firmino), Curió (Marcos Palmeira) é o novo comando do tráfico. Além de novidades no elenco, há o retorno de personagens como Buscapé (Alexandre Rodrigues) e seu melhor amigo, Barbantinho (Edson Oliveira), e outros que tiveram menos destaque no filme e, agora, terão mais espaço.
O escolhido para comandar essa orquestra da O2 Filmes e da HBO Max foi o diretor Aly Muritiba, de sucessos recentes como "Deserto Particular" e "Cangaço Novo". Para ele, é essencial mostrar a favela sob um viés que valoriza as vivências para além da violência.
"É importante que, quando o espectador que viu o filme se sentar para ver a série, entenda que está vendo 'Cidade de Deus'. Mas também é importante que rapidamente o espectador entenda que não está vendo o filme, e sim outra Cidade de Deus, com outra perspectiva, outro ponto de vista e outra linguagem", explica.
Para garantir essa continuidade, a série conta com flashbacks de cenas retiradas do próprio filme, mescladas entre imagens inéditas.
"Mas o resto da série tem uma pegada nova. Passaram-se 20 anos, é outro diretor, outro olhar, uma assinatura própria criada por mim e pelos chefes de departamento da série para ser uma Cidade de Deus contemporânea."
Em termos de história, essa mudança se dará na percepção da vida na favela, promete Aly. "O slogan do filme é 'Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come'. Na série isso não vale, porque esse slogan quer dizer que não há saída."
A série é sobre pessoas que não querem sair. Elas querem ficar, lutar por sua comunidade. Elas enxergam beleza, potência e senso comunitário dentro da comunidade.
Aly Muritiba
Neste sentido, um dos pontos de partida da história, no início dos anos 2000, tem relação justamente com essa conexão humana com a comunidade. Buscapé, agora Wilson, vive uma dualidade entre seus dois "lados", algo que precisará entender e conciliar dentro de si.
"Ele tenta dividir o Wilson do Buscapé, sendo que os dois são a mesma pessoa. Ele saiu da comunidade e só vai lá fotografar", explica o ator Alexandre Rodrigues, confirmando que seu personagem estava, durante muito tempo, mais focado na profissão que em seu lado humano.
"O trabalho o levou a esse lugar, ele não se afastou por querer. Simplesmente foi seguindo a vida dele, o sonho dele. Fotografia é o tesão dele. E a filha dele - uma estrela do funk em ascensão — e o Barbantinho fazem com que ele tome aquele clique e perceba que ele não é só aquilo."
Muritiba contextualiza que a importância de Buscapé, vinda do filme, será mantida, mas que a série vai além. "Ele segue sendo um narrador. O Buscapé hoje é um jornalista policial, testemunha e narrador de muitos eventos. Mas a série é contada da perspectiva não só dele, mas também de Berenice, Barbantinho, Cinthia. A série é uma história coral, assim como o filme, mas com muito mais vozes de outros universos."
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Quero receberSe no filme Berenice (Roberta Rodrigues) aparece apenas como a mulher de Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Cinthia é creditada puramente como a namorada de Mané Galinha (Seu Jorge), aqui elas terão histórias. Berenice será uma grande líder comunitária, enquanto Cinthia é professora de música e trabalha ativamente pelo bem comum dos jovens da Cidade de Deus.
O viés feminino, portanto, também será um ponto crucial da série, que promete abordar, segundo o diretor, o poder das palavras como ferramenta de transformação.
"Todo personagem feminino, no filme, é um alicerce para o personagem masculino", opina Sabrina Rosa. "Mas acho que na série isso está começando a ficar mais equilibrado. Tudo bem que a gente começa ainda nesse lugar de guerra, de violência, mas estamos mostrando o que essas mulheres podem fazer contra isso. A Cinthia, minha personagem, é uma mulher com esperança no futuro, na paz."
Ascensão das milícias será parte da trama
Mesmo assim, a ascensão da violência não fica de fora. Intérprete do traficante Curió, Marcos Palmeira destaca que seu personagem é a consequência da falta de oportunidades.
"Brinco que, se a maconha fosse legalizada, talvez o Curió fosse um grande empresário do ramo. Ele é um reflexo da nossa sociedade totalmente complexa, que prioriza as coisas erradas", reflete. "Esse cara foi excluído, mas, ao mesmo tempo, é um paizão, um homem de família que quer que a comunidade fique bem, e não quer confusão com a polícia ou outras facções. Ele é um cara que estimula os eventos e a cultura dentro da comunidade."
Embora vanguardista, o filme de 2002 recebeu críticas relacionadas ao retrato da violência em comunidades — o que acabou sendo reprisado, em diversos níveis de qualidade, em outras produções. "Para o bem e para o mal, o audiovisual criou uma imagem das comunidades que, em algumas vezes, pode ser rasa ou estereotipada."
Existem alguns filmes que prestaram um serviço gigante para a nossa história, para a história do audiovisual, mas também fizeram com que as populações que não conhecem comunidades imaginassem que na comunidade é sempre só, única e exclusivamente, tiro, porrada e bomba.
Aly Muritiba
"E não é isso", continua. "A maior parte do tempo, nas comunidades, as pessoas estão vivendo suas vidas, estão batalhando suas batalhas, estão sorrindo suas risadas, estão vivendo."
"O filme meteu o pé na porta, e agora está na hora de a gente entender que porta foi essa que se abriu, e de que forma a gente vai lidar com essa realidade. O Brasil está, de certa forma, cada vez mais em busca de representatividade, de falar das nossas mazelas, das nossas glórias e das nossas tristezas", completa Palmeira, atento também ao complexo contexto do surgimento das milícias que é parte da história de seu personagem.
"A Cidade de Deus está mostrando hoje que o poder público perdeu essa guerra. A gente precisa repensar a guerra às drogas. O povo está sendo massacrado, o Rio de Janeiro virou um estado miliciano", continua.
O Brasil passou por quatro anos de uma federação miliciana, e como é que a gente vai conseguir extirpar isso? A gente está filmando em São Paulo, isso é bastante sintomático do que a gente está vivendo.
Marcos Palmeira
Rio de Janeiro dentro de São Paulo
Splash acompanhou um dia de filmagens da série em Jardim Iporanga, zona sul da capital. Antes, a equipe já havia passado por outros bairros de São Paulo, mas também encontrou cenários —e talentos— na capital carioca.
"A gente encontrou lugares aqui que se parecem muito com a Cidade de Deus original", explica Aly. "Tomamos todo o cuidado de trazer muitos atores do Rio de Janeiro e da própria Cidade de Deus. O primeiro casting da série foi feito na comunidade, e dele vieram 15 atores e atrizes que estão hoje com a gente. Acho que a gente está conseguindo encontrar uma verdade muito grande, porque no fim das contas, boa parte da verdade dessa história está nas pessoas e não necessariamente no lugar."
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