Ela teve medo de avião após morte do pai e hoje trata pessoas com aerofobia
Wendy Evangelista tinha 8 anos quando seu pai entrou em um avião pela última vez. Até então, ela era uma menina acostumada a acompanhar de perto a rotina dele, Salvador Evangelista, copiloto que trabalhava para a extinta Vasp. Naquele 29 de setembro de 1988, no entanto, a vida de Wendy mudaria para sempre: seu pai seria morto com um tiro na nuca durante o sequestro do Boeing 737 da companhia, que realizava o voo 375 de Roraima para o Rio de Janeiro.
A história do sequestro e do heroísmo dos tripulantes (e, sobretudo, do piloto Fernando Murilo Lima e Silva) vira cinema 35 anos depois do ocorrido, mas jamais foi esquecida por Wendy. A passagem criou nela um trauma que fez parte de seu desenvolvimento e suas escolhas de vida. Décadas depois, ela foi capaz de transformar a dor em algo bom e lembranças amorosas de seu pai.
Relacionadas
O pai de Wendy foi a única pessoa morta quando Raimundo Nonato Alves da Conceição sequestrou um avião na intenção de jogá-lo sobre o Palácio do Planalto para matar o então presidente José Sarney, em 1988. Os atos de heroísmo que circundam os momentos de tensão daquele dia, ainda que nobres, têm um peso diferente —e, talvez, solitário— para ela.
"O filme, eu tenho consciência, não é sobre a vida do meu pai. Ele é sobre a morte, e começa com uma morte prematura. Não se pode criar um drama de uma história negativa sobre um evento bem-sucedido. Os passageiros estão vivos, o filme precisa relatar esse lado bom, porque foi uma vitória", pontua Wendy, que conversou com Splash no set de filmagens do longa. "O comandante Murilo foi um herói, e isso ninguém pode negar."
Eu não posso esperar que as pessoas entendam que esse evento tão grandioso, tão bom, não seja um evento tão bom para mim. Sempre tive um certo receio de autopreservação, pois é uma história triste só para uma pessoa... e toda a sua família.
Wendy é filha única de Salvador, que também era o único filho dos avós paternos dela. Esse é um dos motivos que torna toda a recordação algo muito pesado, mas não é a única razão para isso. "Ele havia trocado de escala. Ele trocou o voo porque o meu aniversário era cinco dias depois. Então, aquele voo não era dele. Mas é algo que ele faria, trocar de voo para estar comigo no meu aniversário. Não era algo diferente do que eu estava acostumada a vê-lo fazer."
Apesar de enxergar certa solitude na dor pela morte de seu pai, Wendy relata que nunca esteve realmente sozinha, e que sempre soube da importância de seu pai para o salvamento das mais de 100 pessoas que estavam naquele avião.
"O comandante Murilo me falava: 'Foi por pouco tempo, mas teu pai me deu muita força. E vê-lo ali também era algo que me dava força'. O que tive de pai nos meus oito anos eu entendo que tem gente que passa a vida inteira com o pai vivo e não tem."
Oito anos bem vividos
Wendy se recorda de acompanhar o pai em muitas viagens, e conta que estar em um avião, para ela, era rotina. "Eu já passei Natal dentro de avião, já passei Ano Novo dentro de avião, já passei ano novo em hotel dos funcionários da Vasp, e todo muito me conhecia. Tenho tantas memórias da infância que em um momento comecei a questionar tudo isso. Ninguém se lembra tanto assim de seus primeiros oito anos."
Eu achava que havia produzido essas memórias a fim de tampar um buraco, e me questionei por um tempo. Até que vieram as redes sociais, e várias pessoas que trabalharam com meu pai me encontraram e começaram a falar que se lembravam de mim.
Apesar de todas as boas lembranças, a morte do pai deixou uma marca traumatizante em Wendy. Durante anos, ela teve fobia de avião e não conseguia chegar perto de um. Hoje, é psicóloga especializada em tratar justamente medo de voar —a aerofobia.
O trauma é consequência de jamais ter se esquecido daquele dia. Segundo Wendy, ela estava em Curitiba (PR) na casa dos avós paternos naquele fatídico 29 de setembro. "Eu entendi que tinha alguma coisa errada porque a minha avó ficava me mandando para as casas dos vizinhos, e aquele não era o perfil dela."
"Eu entendi que tinha alguma coisa estranha, mas não fazia ideia do que. Na casa da vizinha, a mãe da menina disse que não podíamos assistir à televisão. E, por mais que você seja uma criança, você não é boba. Estava muito claro que havia algo errado."
Wendy se lembra de ter sido "enrolada" durante todo o dia. A espera era pela chegada de sua mãe, que estava no Rio de Janeiro, para que ela desse a notícia à filha. "Meus pais já eram separados, mas eles eram muito amigos", contextualiza. "Chegou a minha mãe e a irmã dela, e elas que me deram a notícia. Mas na hora que entrei no quarto, já sabia que era com ele porque a mala já estava lá."
A psicóloga se recorda de ter sua individualidade respeitada, mesmo em tão pouca idade, quando decidiu não estar presente no velório e no enterro do pai. Ela diz ter ficado sentada sobre o capô do carro da família, enquanto sua mãe e sua madrinha se revezavam para estar com ela.
Hoje casada e mãe de uma filha, Wendy desenvolveu um pânico de avião após ter passado grande parte da infância dentro deles. Já adulta, passou anos estudando para se aprimorar na profissão de psicóloga, a fim de desenvolver a especialidade no tratamento de fobias.
Atualmente, dá palestras e participa de programas educativos que auxiliam no tratamento de fobias, e é justamente por isso que encontrou forças para acompanhar parte das filmagens do longa, onde diz ter se sentido muito acolhida e respeitada.
"Tive resgates muito intensos, e foi muito importante para mim. Não sabia quando eu iria resgatar aquele dia. Em alguns momentos você também resgata as dores, mas é o preço que eu estou disposta a pagar para resgatar o lado bom."