Como série sobre João de Deus foge da 'fetichização' do abusador?

Mais de 300 mulheres denunciaram o médium João de Deus por crimes sexuais desde 2018. Conhecido por operar milagres e atrair multidões do Brasil e do mundo, João Teixeira de Faria, 81, viu seu próprio reinado desabar no interior de Goiás.

De certa forma, essas 300 mulheres são representadas por três atrizes — Bianca Comparato, Karine Teles, Maria Clara Strambi — em "João sem Deus - A Queda de Abadiânia", série ficcional do Canal Brasil que está disponível no catálogo do Globoplay. O médium não é o protagonista. Pelo contrário. As mulheres que vivenciaram os abusos tomam as rédeas da narrativa.

A gente não tinha o interesse de que virasse uma série true crime tradicional, onde o grande personagem é o criminoso. Apesar de ser uma história que já foi contada em livros e documentários, a ficção tem o poder de fazer as pessoas repensarem a história e romperem com os julgamentos que já tiveram. A gente queria um ponto de vista original.
Patricia Corso, roteirista e cocriadora

Dirigida por Marina Person, a série ficcional narra a história de duas irmãs que chegaram a Abadiânia 17 anos antes da prisão de João de Deus. Uma delas, Cecília (Karine Teles), sai do país após os abusos sofridos, enquanto a outra, Carmen (Bianca Comparato), se torna uma fiel funcionária do médium, afirmando que vivenciou o milagre da cura da irmã. A trama se desenrola durante o reencontro das duas irmãs após denúncias feitas na TV.

"Há o perigo de se fazer um fetiche com o abusador ou o assassino [nas séries de crimes reais]. Sem perceber, você está torcendo pelo cara e vendo uma humanidade. É um perigo que a gente pode cometer, até a imprensa mudou, não se divulga mais [o nome deles] porque a pessoa se sente um pouco heroica. Essa série é importante por se diferenciar das outras narrativas", diz Bianca Comparato.

Karine Teles, Maria Clara Strambi e Bianca Comparato na série "João Sem Deus"
Karine Teles, Maria Clara Strambi e Bianca Comparato na série "João Sem Deus" Imagem: Mariana Caldas/Divulgação

Filha de Carmen, Ariane (Maria Clara Strambi) pode ser vista como a personagem mais complexa da história: só percebe que foi abusada após a fala de outras mulheres. "Como é para uma pessoa que teve as suas bases constituídas ali, ver as coisas desmoronarem na frente dela? Uma atmosfera de muita angústia e tensão. Muitas perguntas sem respostas", pontua Maria Clara.

As atrizes acreditam que a série impacta mulheres e homens de maneiras distintas. A produção pode ajudar outras mulheres que passaram por abusos. Não só as que foram vítimas de João de Deus e suas famílias. "Falar desse crime horroroso feito por tanto tempo através do olhar das mulheres, vai fazer com que as mulheres que assistam se sintam vistas e contempladas", pensa Karine Teles.

Que as mulheres se sintam menos sozinhas, porque a gente sente uma solidão absurda nessas situações. É difícil falar sobre. Você sempre é desacreditada e questionada: 'você não está equivocada? Não está exagerando? O que você fez? Onde estava? Que roupa usava?' Há sempre uma desculpa para minimizar o sofrimento quando a gente passa por uma violência.
Karina Teles, atriz

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Preparação

Após as denúncias vierem à tona no programa de Pedro Bial na Globo, muitas mulheres foram convidadas a falar em documentários, livros e matérias jornalísticas sobre os abusos. Esse foi o material usado pelos roteiristas para criar as três personagens centrais e pelo elenco durante o tempo de preparação da produção. Eles preferiram não conversar diretamente com as vítimas.

Não queria ficar pedindo para outras mulheres que viverem traumas, eu nem evitei esse telefonema direto, porque já tinha muito material na internet, um roteiro escrito por uma mulher que tem toda a propriedade para falar do assunto.
Bianca Comparato

A gravação das cenas ainda fizeram os atores conhecerem mais a fundo o poder que João de Deus tinha no dia a dia daquela cidade, o controle de atividades de garimpo de minerais e a disputa territorial em relação a quem não o apoiava. "Uma ideia mafiosa", sintetiza Maria Clara.

"Nada se fazia sem o aval do João, a cidade toda se construiu em volta dele, precisava da autorização dele para ter um táxi, ter uma pousada", explica Antonio Saboia, que interpreta Lindinho, braço direito de João de Deus.

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Além trazer o olhar feminino para o centro da narrativa, a série ficcional tomou o cuidado de não zombar da fé de quem acreditou no médium. A produção não responde, por exemplo, se João de Deus tem ou não o poder de curar.

Muitas pessoas se sentiam curadas pelo João de Deus, pelas entidades. Pessoas passaram por lá e se sentiram bem. Elas também merecem respeito. A gente não queria destruir, digamos assim, ou desrespeitar o sagrado. A gente se sentiu no direito de não responder essa pergunta. Essa pergunta vai ser respondida por cada pessoa que assistir e vai entender de acordo com a fé e a crença dela.
Marina Person, diretora

Apesar de João de Deus não ser o protagonista da série, a figura dele é fundamental para a narrativa baseada nos crimes cometidos por ele. "O poder de persuasão e o magnetismo dele tinham que estar lá presentes. Para isso, a gente teve o Marco Nanini, um baita ator que está no nosso imaginário brasileiro desde sempre. Desde o começo, ele entendeu que não era sobre o João de Deus, ele estava ali para amparar os relatos e as histórias dessas notícias."

Marco Nanini como João de Deus em série do Canal Brasil
Marco Nanini como João de Deus em série do Canal Brasil Imagem: Divulgação

Como e onde assistir?

Todos os episódios estão disponíveis no Globoplay + canais. Os três episódios de 50 minutos também serão exibidos, em sequência, pelo Canal Brasil na sábado (21), a partir das 23h e, no domingo (22), a partir das 20h.

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A obra é a primeira série de coprodução internacional independente entre Brasil e Portugal, do Canal Brasil, Ventre Studio, Coral Europa e TVI.

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