'Sou a paixão das senhorinhas': como atriz trans quebra preconceito na TV?

Atriz, cantora, escritora, DJ e ativista trans, Valéria Barcellos tem uma longa trajetória na arte, mas somente agora, aos 43, ganhou sua grande oportunidade na TV aberta ao ser escalada para "Terra e Paixão". A artista se surpreendeu com o retorno imediato e positivo sobre a personagem, em especial, entre as pessoas mais velhas.

Em conversa com Splash, ela conta que acreditava ser mais difícil cativar esse público com essa história. Na obra de Walcyr Carrasco, ela interpreta Luana, uma mulher trans que foi expulsa de casa e recorreu à prostituição — como 90% da população trans, segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Na faixa dos 40, ela enxergou no Bar da Cândida (Susana Vieira), uma possibilidade de se reerguer e reescrever a sua história.

Eu sou a paixão das senhorinhas! Virei a queen das senhorinhas! Não existe onde eu chego que uma senhorinha não me reconheça... Elas falam pra mim: 'Ah, eu queria tanto te levar pra minha casa, queria fazer uma comida pra você'. Parece que tá levando uma amiga, uma parente, uma filha. Isso é maravilhoso. É maravilhoso chegar nesse nível de proximidade com as pessoas.
Valéria Barcellos

Valéria enxerga essa proximidade como algo fantástico. "Tinha um pouco de temor em saber como essas pessoas de mais idade iam entender essa história de maneira mais emotiva, não tão racional. [O Bar da Cândida] É o núcleo de humor, claro que a gente se aproxima muito mais fazendo rir do que fazendo chorar."

Valéria e a sua Luana ajudam a naturalizar a presença de corpos trans na TV e, consequentemente, a quebrar o preconceito. Luana vive um romance com o Dr. Rodrigo (Michael Rodrigues) sem que sua transgeneridade seja uma questão colocada no texto dessa história de amor.

Ela está em destaque, está amando e sendo amada. Está mostrando para as pessoas [que existe] essa possibilidade real de fugir completamente do estereótipo da sexualização, erotização e fetichização, como uma pessoa que ama e, principalmente, como uma pessoa que é amada todos os dias.
Valéria Barcellos

"Isso a TV Não Mostra"

Além de estar no ar na tela da Globo, Valéria estreia o stand-up "Isso a TV Não Mostra" em terras cariocas. No espetáculo, ela usa o bom humor para contar casos curiosos dos bastidores da TV e da sua própria trajetória. Acontece todos os domingos de novembro, a partir das 20h30, no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana. "É quase uma celebração a mim mesma."

Continua após a publicidade

"Queria muito poder falar o que a TV não mostrava. Quando eu era criança, eu achava que ser artista era ter um poder para diminuir e caber na televisão. Olha a cabeça dessa criança. Hoje em dia, eu entendo que para ser artista, tem que ser muito maior que o tamanho da tela da TV e do cinema. Estou aqui falando poeticamente falando."

A performance tem personagens fictícios — como a Brabie, junção de "Barbie" e "braba" —, música ao vivo e menções ao Rio Grande do Sul, o estado natal de Valéria. O espetáculo foi criado em uma madrugada tomada pela insônia. "Tem muita história de vida também, tem muita liçãozinha e mensagem subliminar ali."

A estreia acontecerá uma semana depois de Valéria apresentar o show "Sururu da Val" também no Rio de Janeiro. Ela cantou sucessos de grandes nomes da MPB, como Alcione e Chico Buarque, e convidou Valesca Popozuda para subir ao palco de surpresa. A funkeira assistia ao espetáculo na plateia e aceitou o desafio desde que recebe o "apertãozinho" de Amaury Lorenzo, o Ramiro de "Terra e Paixão". Assim como ele, outros atores da trama também prestigiaram a apresentação.

Valéria Barcellos ao lado de Diego Martins e Amaury Lorenzo, atores de "Terra e Paixão"
Valéria Barcellos ao lado de Diego Martins e Amaury Lorenzo, atores de "Terra e Paixão" Imagem: Paulo Aragon/Divulgação

Em dezembro, ela espera lançar seu próximo disco, "Saraval" — fusão entre a palavra "saravá" e o nome da artista. "É uma mistura real de sons, tem três canções minhas, me joguei compositora... Tem produção do André Moraes, que me entende desde o primeiro acorde, juntamente do Lucinho Mauro Filho. 'Espumas ao Vento', 'Super Homem' e 'Geni e o Zepelim' são as regravações que estão no meu disco."

Continua após a publicidade

E não para por aí: ela ainda lançará o filme "O Deserto de Luiza", dirigido por Alan Minas, em 2024. No longa, que tem Daniela Fontan, Verônica Debom e Thelma de Freitas no elenco, ela interpreta uma mulher cis.

Passado e futuro

Ela sabe a importância de se falar sobre os traumas, mas quer deixá-los no passado e celebrar as conquistas do hoje e do amanhã. Valéria já foi expulsa de casa e esfaqueada durante um ataque transfóbico, mas ressalta a importância de se falar das realizações atuais da comunidade trans.

Parece que os nossos traumas são muito mais alicerçados que as nossas vitórias, né? Parece que os nossos traumas são sempre mais importantes que as nossas vitórias. É justamente o contrário... A minha geração, de 40 e alguma coisa, está fadada ao fracasso em relação às questões de gênero [porque] tá muito grudada no pensamento de que pessoas trans e travestis só sofrem, são marginais, etc. Esquecem que a gente tem muitas vitórias.
Valéria Barcellos

É certo que em um país como o Brasil, que ainda apresenta estatísticas de violência contra pessoas LGBTQIA+, lembrar dos traumas também é importante.

No papo com Splash, Valéria ainda abriu o coração sobre o sonho de ser mãe no futuro. Esse desejo antigo inspirará a gravação do longa "Mãe" após o término de "Terra e Paixão" e a captação de recursos. Terá produção de João Monteiro e nasceu de uma conversa "regada a muito vinho e petiscos sobre os maiores medos e sonhos".

Continua após a publicidade

"Esse plano vem sendo embrionado durante muito tempo. Agora, a minha cabeça tá um pouco melhor. Eu esperaria um pouco mais ainda. Eu adotaria uma criança um pouco maior, certamente... Tô aqui jogando pro universo. Quando isso se realizar, não vai ser uma escolha? Só sei que vai acontecer de alguma maneira, por adoção, ou por outras vias, mas enfim."

Serviço - "Isso a TV Não Mostra"
Local:
Teatro Gláucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/n - Copacabana, Rio de Janeiro)
Temporada: 05, 12, 19 e 26 de Novembro (domingos)
Horário: 20h30
Ingressos: a partir de R$ 30 (meia) -- no site da Funarj ou na bilheteria

Deixe seu comentário

Só para assinantes