Elza Soares: documentário de último show é registro de reparação histórica
O documentário musical "Elza Ao Vivo no Municipal" (disponível na HBO Max), que traz imagens do show gravado pela artista em São Paulo dois dias antes de morrer, em janeiro de 2022, é o registro de uma reparação histórica. A cantora, que no passado foi vetada de uma apresentação no local, retorna pela porta da frente e ocupa um dos espaços mais elitizados do século 20.
No primeiro ato, a artista faz uma das interpretações mais comoventes de "Meu Guri" (Chico Buarque). Enquanto canta o nascimento do "rebento" que já "foi nascendo com cara de fome", fica inevitável não pensar na mulher que perdeu os dois primeiros filhos à fome.
Entretanto, se de alguma forma a primeira canção faz o público entrar em contato com algumas das dores mais íntimas da artista, de outra ela também abre uma narrativa que ajuda a contar as diferentes fases da trajetória da cantora.
Elza, que carregava 17 pinos na coluna e uma coletânea de dores e alegrias da mulher preta, foi "Dura na Queda" — em referência à canção oferecida a ela por Chico Buarque e que abre o álbum "Do Cóccix Até O Pescoço" (2002).
A interpretação da música vem na sequência de uma fala do próprio Chico. "Elza desatinou. Viu chegar quarta-feira, acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando. Elza ainda está sambando", canta o músico, em um dos trechos mostrados na produção.
O documentário é o retrato de uma Elza que "continuou sambando", apesar das mazelas que enfrentou, e que fez da própria história matéria-prima para ressignificar tragédias, atualizar o discurso e se transforma em uma das principais vozes da juventude — tudo isso quando a expectativa de muitos era pela aposentadoria dela.
Uma série de depoimentos inéditos de artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Lázaro Ramos, Alcione, Paulo Gustavo (1978-2021) e Rita Lee (1947-2023) também ajudam a ilustrar o impacto da artista no cenário musical brasileiro. Em um dos trechos mais bonitos, Alcione faz uma declaração de amor e reconhecimento à cantora.
"Eu aprendi a cantar samba ouvindo Elza Soares. E depois, assistindo à Elza Soares, comecei a querer me vestir como Elza Soares. O meu primeiro vestido para um show foi todo de franjão, que ela tinha, e eu queria fazer parecido com ela. Realmente é bom querer se parecer com a maior cantora de samba de todos os tempos. E cantora de tudo. Elza tem essa preciosidade na voz. Ela pode tudo", diz Alcione.
'Mulher do Fim do Mundo'
"Elza Ao Vivo no Municipal" já nasce como um dos registros mais importantes da carreira e da vida de Elza. Ele documenta o fechamento simbólico de uma carreira que transitou por diferentes estilos, gêneros e fases. De alguma forma, que racionalidade alguma é capaz de explicar, Elza sabia que aquela seria a última vez que subiria ao palco.
A mulher, que em 2015 havia prometido "cantar até o fim", repassa a própria trajetória durante a gravação do último show — gravado dois dias antes de morrer —, e convida o público a ocupar o Theatro Municipal. A mesma que ao longo de toda uma existência deu voz à diversidade.
A interpretação de "Mulher do Fim do Mundo" fecha a produção. A canção, que também dá nome ao álbum aclamado pela crítica e vencedor do Grammy Latino, é a materialização do desejo de ocupar o palco até o fim. A "pele preta" e a "voz" do milênio por um momento deixam as dores na "chuva de confetes" e conhecem a eternidade que só a arte pode proporcionar.
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