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Em caso de violência doméstica, investigado não deve ser vitimizado

A revelação de que Ana Hickmann registrou boletim de ocorrência por violência física causou perplexidade embora já circulassem vídeos e relatos anteriores de condutas de constrangimento e humilhação por parte do marido, Alexandre Correa, o que pela lei já configuram, em tese, crime de violência psicológica.

Um erro comum é associar a violência à violência física. Como se a violência tivesse surgido na agressão e o caminho de humilhação, controle, desqualificação fosse irrelevante. A violência física é apenas uma forma de violência e pode causar menos dano do que a psicológica, já que cicatrizes se curam mais facilmente do que traumas e a destruição da autoestima.

Vale destacar que, quando isso acontece com uma mulher famosa, a repercussão pode, sim, ajudar esta e outras vítimas de violência doméstica. Ao divulgar, explicar, debater, a imprensa cumpre seu papel de provocar uma reflexão que provoque uma conscientização da gravidade da situação. Mas é preciso responsabilidade para não contribuir com o "coitadismo" do agressor, que agora se coloca como arrependido e preocupado, fazendo com que pareça que a vítima é ele.

Vamos lembrar ainda que, quando filhos presenciam uma mãe sendo agredida, eles são agredidos também. Denunciar a agressão sofrida não é expor um filho, mas sim protegê-lo. Mulheres vítimas de qualquer tipo de abuso devem denunciar para se proteger e proteger aos seus, sem medo e sem vergonha. A vergonha é, ou deveria ser, de quem agride. Assim como o medo, de ser "preso" (responsabilizado), no caso, como determina a Lei Maria da Penha.

Homens autores de violência, em regra, são primários, de bons antecedentes, com residência fixa e trabalho lícitos, por isso muitas pessoas tendem a questionar a palavra da vítima. Ser violento é um padrão aprendido ao longo da vida que se repete nas relações íntimas.

Há um padrão comum que se observa nos processos por violência doméstica e familiar: autores de violência invertem a responsabilidade e assumem o papel de vítimas. Falam do seu sofrimento, de como o processo prejudicou sua vida, não a da vítima.

Fazer o papel de vítima talvez seja a estratégia de manipulação mais poderosa do abusador. Ele pode desfilar por aí escondendo habilmente seu comportamento agressivo sob o disfarce de ser a parte lesada. Ele é altamente qualificado para fazer você sentir pena dele
Avery Neal, especialista em relações abusivas, no livro "Relações Destrutivas".

Estudos realizados com homens autores de violência revelam que alguns fatores contribuem para a violência contra a parceira, como "a transferência de culpa, superestimação dos defeitos da parceira, insensibilidade, limitações empáticas, dificuldades de gerenciar conflitos no relacionamento íntimo".

Esses padrões muitas vezes são aceitos, reproduzidos ou justificados por uma estrutura de poder. O machismo se manifesta em todas as relações ou esferas de poder. Nesse contexto, a forma como a violência é retratada tem papel fundamental na sua prevenção. Os meios de comunicação podem romper estereótipos para conscientizar homens, mulheres em situação de violência e toda a sociedade.

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A portuguesa Rita Simões, em obra sobre a violência contra as mulheres na mídia, mostra que "quando o autor da violência não é o monstruoso Jack, o estripador, mas, sim, um homem comum, pertencente à maioria dominante, o motivo de sua transformação em um homem violento é colocado no objeto do seu ataque, ilibando-o de culpa".

A violência contra a mulher é um problema social e, assim, todos devem fazer parte da solução para a mudança de olhar em relação não só à violência, mas também às pessoas envolvidas nesse contexto.

Um importante estudo do Instituto Avon, O papel do Homem na Desconstrução do Machismo, traz a dimensão desse impacto, já que muitos homens mudaram sua atitude em razão da intervenção da mídia ou sociedade, apontando-se como principais fatores de mudança uma conversa com alguém próximo (54%) e campanhas, posts e comentários em redes sociais (18%).

Culpabilizar a vítima direta ou indiretamente pode ter o efeito reverso de silenciar muitas mulheres, que se tornam reféns da própria vida. Somos um país recordista em índices de feminicídios e de mulheres violadas - e cada pessoa pode fazer a diferença para mudar isso. O primeiro passo pode ser dar o nome correto: é violência doméstica. Não é briga de casal, nem desinteligência, nem desentendimento. É crime e tem lei para combater isso.

* Mariana Kotscho tem o site marianakotscho.uol.com.br e é consultora voluntária do Instituto Maria da Penha

** Valéria Scarance é Promotora de Justiça especializada em violência doméstica MP-SP e Professora da PUC-SP

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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