'Somos peneiras': eles minuciosamente caçam erros e salvam filmes do vexame
Para um filme, série ou novela ir ao ar, há diversos trabalhos nos bastidores que garantem a qualidade de cada cena. Entre os envolvidos, existe uma função específica para evitar possíveis erros no produto final: são os continuístas.
São eles que garantem a coerência na continuidade entre as cenas. Isso porque elas não são gravadas em ordem cronológica —e aqui está o risco de que as coisas fiquem sem sentido.
Para ficar mais claro: é quando um extintor de incêndio, por exemplo, aparece em uma novela de época, ou, então, quando um personagem com o cabelo desarrumado surge, "do nada", com os fios arrumados.
Há ainda erros famosos, como o que ocorreu na série "Game of Thrones" (HBO) que deixou escapar um copo do Starbucks em cima da mesa. Não faz sentido.
'P*rra, isso é erro de continuidade'
Uma dessas profissionais é a carioca Mônica Medina, 28. Ela passou grande parte da infância em estúdios da TV Globo. O pai dela trabalhava na empresa e Mônica o acompanhava sempre que possível.
Mais tarde, a jovem acabou se interessando ainda mais pelo mundo audiovisual. Estudou cinema e fotografia.
É difícil definir a continuidade em uma única frase, mas é o departamento que organiza todas as informações por área durante a execução do roteiro (...) Na continuidade, ninguém percebe quando está certo. Quando há um erro, todo mundo repara.
Mônica Medina
Em 2015, ela foi chamada para o "Vai Que Cola — O Filme", como estagiária. Depois, virou assistente. Desde então, trabalha com continuidade em novelas e filmes.
Por isso, ela acumula diversas histórias de bastidores do trabalho, como uma envolvendo o ator Paulo Gustavo, que morreu em 2021. Era o primeiro filme em que Mônica atuava como continuísta.
Em determinada cena, o ator precisava segurar várias sacolas —uma delas era amarela e não podia faltar porque tinha aparecido anteriormente e era bem marcante. Para brincar com Mônica, Paulo Gustavo disse que não seguraria todas as sacolas.
Ele disse que, além disso, ia falar na cena que era erro da continuidade. Eu era novinha e fiquei desesperada.
Mônica Medina
Quando a cena foi gravada, Paulo Gustavo realmente disse a frase, culpando os continuístas —e isso foi ao ar. A cena ocorre quando o personagem tenta fugir do síndico do prédio, ao lado do amigo Ferdinando (Marcus Majella).
Surgiu muita bolsa aqui e a gente nem estava com tanta bolsa assim na cena anterior. P*rra, isso é erro de continuidade.
Paulo Gustavo, em "Vai Que Cola -- O Filme"
As pessoas deram risada ou, então, nem perceberam, mas sei que foi algo que ele falou para mim. Fiquei sem acreditar. Guardo essa história no coração, toda vez dou risada, com saudades. Ele era uma pessoa hilária e maravilhosa. Aprendi muito com ele. Mônica Medina
Outro exemplo de Mônica ocorreu mais recentemente em "Vai Na Fé", novela da TV Globo. Um dos personagens tinha tomado um tiro no braço direito e, mais para frente, isso iria impedi-lo de desenhar.
Um dia, o ator gravava o capítulo 60 e, no outro, o 50. Tínhamos de dizer 'olha, agora é hora de tirar a tipoia do braço' ou 'agora tem cicatriz'. Ele não poderia, por exemplo, desenhar com o braço direito porque ainda estava machucado. Estamos sempre dando o aviso para evitar erros.
Mônica Medina
'Somos uma peneira de erros'
Leonardo Gonçalves, 36, trabalhou 13 anos com continuidade principalmente em novelas. No portfólio, entram "Carrossel" e "Chiquititas", do SBT, que envolvem muitas crianças.
Fazer novela infantil é um grande desafio para continuidade porque uma cena é gravada várias vezes e o ator precisa repetir sempre os mesmos movimentos e gestos. A minha primeira foi 'Carrossel'.
Como as crianças da novela eram umas pestinhas, isso era um desafio diário. A gente tinha de praticamente atuar para ela entender o que precisava fazer. Isso gerava muitos risos da equipe e das próprias crianças.
Segundo Leonardo, é preciso estar totalmente por dentro do roteiro.
Detectamos possíveis erros a todo momento —cronológicos, temporais, em diálogos, nos figurinos, em objetos e até fotografia. Somos uma grande peneira que vai eliminando os erros durante as gravações.
Segundo ele, erros ainda passam, mas, antes disso, houve grande volume de "problemas" evitados —coisa que o público nem sequer sabe.
Se uma pessoa assistir a qualquer obra procurando algum tipo de erro, ela provavelmente vai encontrar. Só que a função do continuísta é minimizar ao máximo, de forma que o público se concentre na história e não se distraia com erros.
'Emoção do ator'
Formado em cinema e audiovisual, Thalison Marques, 29, trabalha há quatro anos com continuidade —atualmente, está no SBT. Ele resume a profissão da seguinte maneira:
Todo mundo sabe o que é um erro de continuidade, mas ninguém sabe o que um continuísta faz de verdade.
No SBT, os cenários são montados e desmontados diariamente e alguns objetos podem se perder do lugar. Por isso, é trabalho do continuísta ficar de olho neles.
Também preciso ficar atento à iluminação porque, de uma cena para outra, ela pode mudar, e isso afeta a continuidade. Os movimentos da câmera são importantes também. Há eixos e ângulos que precisam ser respeitados. Um exemplo é quando os olhares dos atores não se encaixam e, quando a pessoa assiste, fica esteticamente feio.
Outro exemplo do trabalho de Thalison foi quando a personagem da novela "Poliana Moça" foi sequestrada e ficou perdida na floresta.
Foram vários dias em que, no decorrer do tempo, ela ficava cada vez mais suja. Precisamos ter esse tipo de controle: ela não pode aparecer limpa do nada —só se, por exemplo, ela aparecer em uma cena dentro de um lago para se limpar. Sem essa justificativa, ficaria estranho.
Outro ponto de atenção dos continuístas é a emoção dos atores.
Se o ator sai de uma situação triste, de uma briga com a namorada, por exemplo, ele não pode chegar a um restaurante sorrindo ou feliz.