Começou a fumar aos 4; 'trote' de Drummond: os causos de Martinho da Vila
Elcio Padovez
Colaboração para Splash, do Rio
27/03/2024 12h00
Nascido carioca em 1938, Martinho da Vila se considera paulista quando questionado como nasceu para a música. Foi em São Paulo, no início dos anos 1960, que ele fez sua primeira apresentação musical, assim como recebeu o sobrenome artístico que o acompanha até hoje. Aos 86 anos e dono de mais de seis décadas de carreira, decidiu abrir histórias inéditas ao grande público com a publicação do livro autobiográfico "Martinho da Vida" (Editora Planeta).
Em entrevista exclusiva a Splash, conta algumas delas, como quando tomou um porre em Angola e foi cuidado por dona Ivone Lara, além do dia em que desligou o telefone na cara do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade por pensar que fosse trote.
Martinho já fez de tudo um pouco antes de virar um dos principais artistas da música popular brasileira. Já sonhou em ser jogador de futebol e defender as cores do Vasco da Gama, seu time do coração. Quando era criança e morava na Boca do Mato, um dos morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, vendia jornais velhos deixados pelo pai, Josué, e que serviam de embrulhos para mercearias em troca de alimentos. Trabalhou em farmácia, estudou contabilidade, serviu ao Exército por 13 anos, onde chegou à patente de sargento, além de ter tido experiências como químico industrial. E foi lá na favela, com quatro anos, que ele aprendeu a fumar. Hábito que o acompanha até hoje.
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"Gostava de comer terra e minha avó, Procópia, guardou umas guimbas de cigarro e disse para minha mãe, Tereza, que ia colocar uma delas na minha boca quando me visse com terra na boca. Assim, eu perderia a vontade de fazer isso e perdi mesmo, só que gostei do gosto do tabaco e fumo até hoje. Me considero um fumante de charutos, porque não trago, não passo de cinco cigarros por dia e fumo o mesmo cigarro algumas vezes. Acendo, dou um trago e apago. Fiz um check-up esses dias e meu médico ficou impressionado de meus pulmões estarem limpos".
Porre o fez dormir no ombro de Dorival Caymmi
A vida de Martinho também é repleta de histórias com artistas famosos. Uma delas é com dona Ivone Lara, madrinha e professora de samba de duas de suas filhas, Analimar e Mart'nália. Durante uma turnê em Angola, ela precisou usar da formação em enfermagem para cuidar de um surto psicótico que o artista teve após tomar um porre.
"Eu estava tenso, porque estava com um grupo de artistas do Brasil e eu era o único que já era famoso lá no país, todo mundo vinha me pedir para resolver algo. Quando fomos embarcar de volta, passei mal e a tripulação do voo quis me dar uma injeção tranquilizante, mas dona Ivone não deixou e só a conversa dela me acalmou".
Neste voo, Martinho viajou sentado ao lado do músico baiano Dorival Caymmi, que também ajudou a acalmá-lo. "Estava andando para lá e para cá no avião. Até que ele me chamou para me sentar ao lado dele, e aquele jeitão tranquilo me desarmou, ao ponto de eu ter dormido boa parte da viagem encostado no ombro dele".
Quer ver o Carnaval como espectador
Martinho já viveu de tudo em seis décadas de relação com a Vila Isabel e o Carnaval carioca. Tanto que anunciou e confirma não ter mais vontade de desfilar na avenida, mas, sim, fazer algo que nunca conseguiu: assistir a um desfile de sua escola de samba do coração no camarote. Ele garante, mas sempre pode mudar de ideia, de que 2024 marca sua despedida da Sapucaí, após a reedição do enredo Gbalá - viagem ao templo da criação, vitorioso em 1993 e que, este ano, alcançou o sexto lugar.
No livro autobiográfico, ele também recorda do dia em que desligou o telefone na cara de Carlos Drummond de Andrade achando ser um trote. "Em 1980, a Vila apresentou o enredo 'Sonho de um sonho', inspirado em um poema de Drummond. Um dia, ele ligou em casa e ao se apresentar disse que eu era o Solano Trindade (poeta pernambucano), e desliguei. Só me caiu a ficha de que ele estava falando a verdade quando ligou de novo, pedi desculpas e pudemos conversar sobre a versão que eu havia musicado para o Carnaval".
O artista não pipoca ao avaliar a relação entre o carnaval carioca e o jogo do bicho. Para Martinho, ele tem tudo a ver com a festa e a Vila Isabel, tendo sido inventado no próprio bairro pelo Barão de Drummond (1892). "Os bicheiros entraram no Carnaval por falhas da Prefeitura, que investia um aporte para as escolas capricharem nos desfiles, por conta de movimentar o turismo. Mas o dinheiro nem sempre chegava na hora certa, e o pessoal recorria a empréstimos dos contraventores para poder entrar na avenida como planejado. Pagavam o empréstimo após a festa, mas a relação foi crescendo e muitos bicheiros viraram patronos das agremiações".
Martinho conta que, em 1996, um ano depois de ele ter entrado na Vila Isabel, o bicheiro Miro Garcia reuniu alguns jurados dentro da igreja de Nossa Senhora de Lourdes para distribuir propinas, com o objetivo de fazer a escola campeã, apesar de não ter feito um desfile que não a credenciava a levar o troféu. Mesmo assim, conseguiu um honroso quarto lugar, resultado que se repetiu no ano seguinte, mas sem negociação do contraventor. A Vila havia feito um desfile melhor e conquistou a quarta colocação por méritos.
Racismo, misoginia e política
O compositor de 446 canções é antenado no que as novas gerações de músicos no Brasil têm feito e diz que o país é o mais musical do mundo em questão de variedade de ritmos. Algumas canções de Martinho continuam a ser regravadas, como Disritmia, e tocadas, além de tocarem em um debate que tem crescido cada vez mais na sociedade brasileira: o combate ao racismo.
"O Brasil avançou muito neste assunto. Uma das primeiras viagens que fiz ao exterior foi para os Estados Unidos e tive uma impressão forte em ver pretos estrelando campanhas publicitárias, em destaque. Hoje, vemos isso no Brasil, com o preto em destaque na mídia".
Martinho também não foge do questionamento de alguns grupos, especialmente feministas, acusarem algumas composições suas de machistas e que retratam a mulher em uma posição inferior ao homem. "Antigamente, havia muito mais compositores homens do que mulheres e há letras que são masculinas. Algumas músicas também foram criadas em um determinado tempo. Um exemplo é a letra de 'Ai que Saudades da Amélia', escrita pelos progressistas Ataulfo Alves e Mario Lago. Se eles fossem lançar esta música hoje, ela não seria nem lançada ou seria sucesso, como foi em 1942. Mas ela foi feita em um tempo diferente do nosso hoje, é preciso analisar o contexto".
Ele conta que até hoje sofre críticas pela letra de 'Você Não Passa de uma Mulher" (1975). Segundo Martinho, ele escreveu outras versões e a ideia era falar de todos os tipos de mulheres, mas uma palavra mal escolhida trouxe a confusão. "Às vezes, você demora para achar a palavra que casa perfeitamente. Eu queria colocar 'mas você é realmente uma mulher' na versão final, mas como já havia gravado a primeira versão, a gravadora gostou da que é considerada polêmica, e lançou sem autorização. A música estourou e o pessoal passou a pedir nos shows. Uns vaiavam, outros aplaudiam. Para mim, música é para ser sentida primeiro, e não analisada. E o verso não foi no sentido de ofender".
Em relação à política, Martinho também é direto e mantém um posicionamento político mais à esquerda, avaliando que ela pode ser fanática, assim como a direita, radical. "O Brasil sempre foi dividido e não é de hoje. Nunca tivemos unanimidade e isso faz parte da democracia. Procuro me entender bem e respeitar meu público, independente da corrente que ele siga. Com o livro, espero que ele possa me conhecer ainda melhor, fora dos palcos e das biografias que já saíram sobre mim e não estão completas".
Eventos de lançamento
Nesta quarta-feira (27), a partir das 19h, Martinho estará na Livraria da Travessa do Shopping Leblon para lançar o livro no Rio de Janeiro. São Paulo também receberá uma noite de autógrafos. No dia 3 de abril, às 19h, o artista participa, no Sesc Pinheiros, de um bate-papo com o jornalista Julio Maria, biógrafo do cantor Ney Matogrosso, e da gestora cultural Kelly Adriano.