Quando Madonna cruzar a passarela de cem metros da varanda do hotel Copacabana Palace rumo ao palco na praia, Luiz Oscar Niemeyer cumprirá uma missão que planejou por três anos.
O carioca de 67 anos, sobrinho do arquiteto Oscar Niemeyer, convenceu Madonna a vir ao Brasil fazer o maior show da carreira.
O público esperado é de 1,5 milhão de pessoas.
A negociação secreta começou em um café no Leblon, em 2021, passou pela entrega de uma carta ao chefe da maior produtora do mundo em Los Angeles, em 2022, e só foi confirmada por email este ano.
A produção durou três meses e foi frenética, com momentos de tensão e agonia — e de uma Madonna descrita por ele como meticulosa e extremamente profissional.
O palco subiu rápido na praia, mas a fundação dele é de quatro décadas. Niemeyer é um dos principais responsáveis pelo Brasil ter entrado na rota dos megashows.
Ele produziu o maior show da carreira de Paul McCartney, que em 1990 reuniu 184 mil fãs no Maracanã, e todas as outras 35 apresentações do ex-beatle no Brasil.
Niemeyer também trouxe Bob Dylan, Nirvana, Bon Jovi, Aerosmith, Whitney Houston e The Cure ao extinto festival Hollywood Rock.
Fez os Rolling Stones estrearem no país em 1995 e, 11 anos depois, tocarem para 1,2 milhão de pessoas em Copacabana, em show gratuito - modelo repetido com Stevie Wonder em 2012 e, agora, com Madonna.
U2, Elton John, Coldplay, Eric Clapton e Roger Waters também estão em seu currículo. Mas essa lista de milhões deve parar de crescer em breve, segundo o próprio.
Os bastidores da vinda da 'rainha do pop'
Dani, quando acabou o show dos Rolling Stones eu jurei que nunca mais faria essa loucura. Só você para me botar nessa de volta.
Luiz Oscar Niemeyer
Daniela Maia, filha de Cesar Maia, ex-prefeito do Rio, diz que ouviu esse desabafo de Niemeyer numa reunião no último dia 24 de abril.
A atual 'loucura' começou em maio de 2021.
Daniela era presidente da RioTur, empresa de turismo do Rio, e queria repetir o feito do pai, que encomendou o show dos Stones em Copacabana. Para isso, ela chamou Niemeyer para um café da manhã no hotel Janeiro, no Leblon.
"Eu queria a Madonna. E para isso tinha que ser ele. Não é qualquer um que é recebido pelos empresários dos artistas com uma ideia desse tamanho", conta Daniela.
O plano avançou quando a pandemia de covid começou a recuar.
"Em março de 2022, o Niemeyer me pediu para fazer uma carta. Era tudo secreto. Só sabíamos eu, ele e o Eduardo Paes (prefeito do Rio). Não tive coragem nem de imprimir na RioTur, por medo de alguém ver. Fui para casa e imprimi", afirma.
Daniela, hoje secretária de Turismo do Rio, mostrou a carta ao UOL. O texto, otimista, dizia que o Rio queria "receber e patrocinar o show de uma das maiores artistas do planeta na 1ª metade de 2023".
Eu tinha ido a Los Angeles para divulgar o Mita (festival produzido por ele e Luiz Guilherme Niemeyer, seu filho e sócio na produtora Bonus Track). Fiquei alguns dias e encontrei o Arthur Fogel [diretor da produtora Live Nation]. Ele achou o convite interessante, mas não tinha nada certo
Luiz Oscar Niemeyer
"Fiquei esperando. Quando ela cancelou a turnê (em junho de 2023, internada por uma infecção bacteriana) foi uma tristeza. Falei com o Eduardo (Paes) que a gente não ia conseguir", lembra Daniela.
Em outubro de 2023, Madonna melhorou e voltou aos palcos.
Em fevereiro deste ano, outra boa notícia: a cantora estrelou uma campanha publicitária brasileira, do banco Itaú. Caso ela topasse o show, havia um patrocinador óbvio a se buscar.
No mesmo mês, quando ainda se recuperava de fraturas que sofreu esquiando em Aspen, Niemeyer recebeu por email a notícia de Fogel: Madonna havia topado o show.
O preço de Madonna
O show custou R$ 59,9 milhões, soma dos custos de cachê e produção --só a construção da passarela ligando o Copacabana ao palco saiu por R$ 195 mil.
O próprio Niemeyer diz que "tomou um susto" com os valores.
"A gente tinha ideia dos gastos pelos shows anteriores. Mas os custos de produção no mundo inteiro aumentaram barbaramente depois da pandemia. Num primeiro momento a gente tomou um susto", afirma.
O show dos Rolling Stones em Copacabana em 2006 custou R$ 9,6 milhões — R$ 25,9 milhões corrigidos pela inflação, menos da metade do valor de Madonna.
O UOL descobriu os valores do show da cantora ao obter mensagens enviadas por Niemeyer pedindo patrocínio ao Governo do Rio.
O custo dos Stones está em documentos da ação judicial em que o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) cobrou os direitos autorais pelo show.
Em 2006, Niemeyer se recusou a pagar o valor pedido pelo Ecad, R$ 1 milhão (R$ 3,2 milhões em valor atual). Ele pagou R$ 198 mil (R$ 533 mil na correção). Na planilha de 2024, ele prevê pagar R$ 1 milhão.
Tudo subiu, mas o produtor e sua equipe não desistiram. "Naturalmente o Itaú foi a primeira empresa que procuramos", diz Niemeyer. Daniela afirma que o banco já buscava alguma forma de trazer a cantora: "As energias se cruzaram".
As contas fecharam quando, após o Itaú, entraram outros patrocinadores, como a Heineken e a Deezer. Os únicos valores revelados são os R$ 10 milhões do patrocínio da Prefeitura do Rio e a mesma quantia do governo do estado.
Para efeito de comparação, o custo total de um show de um artista de primeiro escalão do pop em estádio, para cerca de 40 mil pessoas, pode chegar atualmente a cerca de R$ 20 milhões no Brasil.
Madonna quis aprovar tudo
O prazo ficou ainda mais curto com a cliente implacável.
Absolutamente tudo passa pela Madonna. Vejo o nível de detalhe e de profissionalismo. O projeto foi discutido nos mínimos detalhes: disposição dos telões, da luz, tapete cobrindo o palco, camarins, acessos, transmissão de TV, o posicionamento de câmeras. Tudo.
Luiz Oscar Niemeyer
"Eu reservei um salão do Copacabana Palace só para ela ensaiar. Apesar de ser o último show da turnê, ela ainda está ensaiando. Para você ver como o negócio é profissional", afirma Niemeyer.
Niemeyer faz questão de falar do salão. O motivo aparece na planilha de custos obtida pela reportagem. Ele pagou R$ 877,8 mil ao hotel só para reservar os espaços de ensaio e camarim.
A 'Celebration Tour' durou um ano e meio, com 81 shows. A atração de abertura em Copacabana, o DJ norte-americano Diplo, também foi aprovada por Madonna.
"Ela está trazendo 200 pessoas. Nas maiores turnês que fiz os artistas trazem em torno de 120. É uma mobilização muito grande."
O time local é muito maior. "A produção vai envolver 4.000 pessoas", afirma Niemeyer. Esse número não inclui policiais, médicos e agentes de trânsito.
"Fico trabalhando o tempo todo. Com esse negócio de WhatsApp, email no smartphone, a gente está ligado 24h por dia", completa.
No seu escritório na Gávea, zona sul do Rio, entre dois quadros de shows de Paul McCartney e Roger Waters, Niemeyer revela seu projeto após Madonna: férias na Bahia.
A construção de Niemeyer
Na turnê Celebration, em que repassa a carreira, Madonna costuma contar aos fãs que chegou a Nova York em 1978 com muitos sonhos e pouca grana: US$ 35 no bolso.
Não é o caso de Niemeyer. A mãe dele é descendente de barões que frequentavam a corte do Rio no período imperial, segundo sua autobiografia "Memórias do Rock".
O pai foi médico de dois generais presidentes (Costa e Silva e Figueiredo) e de Roberto Marinho, dono da Globo.
Em 1975, o roqueiro hippie de 19 anos foi à Califórnia "estudar inglês" e ver festivais e shows de ídolos como Bob Dylan e Neil Young. Lá, viu o rock passar de contracultura a grande negócio.
Discos de rock demoravam três meses para chegar ao Brasil. Eu via a música como inatingível. Fui privilegiado de estar na Califórnia naqueles shows. Estava ali de frente para meu sonho, dizendo: 'Vai que é sua'.
Luiz Oscar Niemeyer
De volta ao Brasil, ele virou estagiário da Artplan, agência de Abraham Medina, pai de Roberto Medina. Carregou caixas no show de Frank Sinatra no Rio em 1980, ganhou confiança da família e entrou no projeto Rock in Rio.
A agenda de contatos gringos começou a ser escrita quando ele foi aos EUA com Roberto Medina buscar artistas que pudessem tocar no festival em 1985.
Ele começou a conhecer futuros figurões da indústria mundial — e a virar um.
Na época, a confiança nos brasileiros era tão baixa que o Queen, que tocou aqui em 1981, só topou voltar se o produtor do Rock in Rio fosse o mesmo da banda, Gerry Stickells. O inglês teve a missão de tutelar a equipe local.
"Ficou claro que a gente não tinha no Brasil uma 'expertise' para fazer grandes shows. Não tinha tecnologia para entregar aquilo a que as bandas são acostumadas nos EUA e Europa", diz Niemeyer.
Até o início dos anos 1990 a gente trazia de fora a equipe de produção, equipamento de som, de luz, telão, até gerador. Quando começamos a entender como fazer e o que entregar para o artista, ganhamos credibilidade e confiança
Hollywood Rock: tiro, fuga, salto da janela
A evolução dos anos 1990 foi além dos equipamentos de áudio e vídeo.
O produtor teve de aprender a lidar com situações surreais no Hollywood Rock — seja pela loucura do Brasil ou dos artistas.
- Annie Lennox se apavorou quando uma bala perdida ricocheteou na parede do seu apartamento de hotel em SP, em 1990;
- Kurt Cobain pulou de uma varanda a outra do 20º andar do hotel do Rio para fugir de Courtney Love em 1993;
- Bon Jovi exigiu passagens de 1ª classe só para ver o Super Bowl em Miami e voltar, entre um show e outro em 1990 (Niemeyer diz que quase enlouqueceu com o custo extra, mas respirou fundo e pagou, ou eles não fariam a segunda data).
Os shows aconteceram e escândalos foram evitados. Niemeyer ganhou a fama de diplomático, um "apaga incêndio".
"Sou um conciliador. Procuro sempre entender o lado das pessoas. Nunca ser radical numa posição sem antes avaliar o outro lado da mesa. É o famoso jogo de cintura. Desenvolvi com o tempo, mas também trago comigo como parte do meu temperamento", afirma.
Um beatle e os Rolling Stones
Paul McCartney no Maracanã em 1990 é um caso de diplomacia avançada.
Niemeyer conseguiu unir rivais políticos antes em nome da apresentação: o governador Moreira Franco (PMDB), o prefeito Marcelo Allencar (do PDT de Brizola) e Roberto Marinho.
"O Rio tinha perdido a Fórmula 1 para SP e as pessoas estavam revoltadas aqui. Falei que tinha um evento infinitamente mais barato e que seria um marco para a cidade: um beatle na América Latina pela primeira vez", lembra o produtor.
Todos se uniram por Paul.
A um mês do show, o Plano Collor causou caos na economia. Niemeyer foi aos EUA e conseguiu um desconto no cachê de Paul McCartney. O produtor do ex-beatle era seu amigo: Gerry Stickells, aquele que o Queen exigiu no Rock in Rio.
Outro contato dos anos 1980 o levou ainda mais alto na indústria da música.
Niemeyer produziu em 1988 um festival da Anistia Internacional que trouxe Peter Gabriel, Sting e Bruce Springsteen a São Paulo.
Foi nesse evento que ele conheceu o canandense Arthur Fogel, com quem fechou a contratação de Madonna.
À época do primeiro encontro, Fogel era um dos assistentes da produção gringa. Hoje, como chefe de turnês da Live Nation, é o homem mais poderoso do mundo no mercado de shows e gerencia datas de artistas como Rolling Stones e, claro, Madonna.
Uma célebre megaoperação na qual Fogel ajudou o parceiro brasileiro a trazer Jagger, Richards e cia. para Copacabana em 2006.
A ideia começou a ser discutida em 2002, quando o então prefeito do Rio, Cesar Maia, levou a Niemeyer o sonho de fazer um megashow na praia carioca.
A prefeitura fez um "piloto" em março de 2005: levou Lenny Kravitz, sem produção de Niemeyer, para 500 mil pessoas em Copacabana.
O show atrasou, pois o cantor demorou duas horas para atravessar a multidão entre o hotel e o palco.
Na época, Niemeyer já estava negociando com os Stones. O projeto de levá-los à praia era tão grande que o produtor pensou em desistir.
Depois de todos toparem, pensei que estava complicando minha vida financeira. Se fizesse dois shows pagos em São Paulo seria muito mais fácil. Voltei para eles e falei isso. A resposta foi: 'Ou você faz em Copacabana ou não tem mais turnê.' Os Stones exigiram.
Para evitar o problema de 2005, Niemeyer mandou fazer uma passarela que levava os músicos direto do hotel ao palco, passando por cima da multidão.
Não faltou sufoco.
O produtor diz em sua biografia que a Claro, patrocinadora do evento, pediu uma área VIP para 5.000 pessoas. Os convidados "preferiram ficar tomando uísque nos bastidores" e deixaram a frente do palco vazia.
"O diretor de produção do grupo veio pra cima: 'Luiz Oscar, tem que botar o povo lá, assim os Stones não entram em cena'. Fora do Brasil, os artistas não gostam de privilégios para os convidados, querem os verdadeiros fãs junto a eles", escreveu.
A área começou a encher na última hora e, no fim, os Stones aceitaram tocar.
Questionado pelo UOL sobre o tamanho da polêmica área VIP do show de Madonna, de 7.500 pessoas, Niemeyer ativa o modo diplomático.
Ele desconversa e diz que "o modelo funcionou bem nos Stones".
A saia justa é explicada em um email em que Niemeyer pede patrocínio ao estado do Rio. A área VIP é um artifício para viabilizar o megashow, mesmo que ele e artistas não gostem.
A cota de mil convidados é uma das permutas oferecidas para convencer o estado a pagar R$ 10 milhões.
Enquanto Madonna subia ao trono do pop, Niemeyer passou sufocos, aprendeu truques e fez contatos que puseram o Brasil na rota dos grandes shows.
Mas, agora que ele mais uma vez realizou o que parecia impossível, a hora de tirar o pé do acelerador parece ter chegado.
Talvez eu não faça mais e seja meu último desse porte. Vamos ver o que a vida vai apresentar, e se eu vou ter ainda disposição para enfrentar. Isso demanda muito de sua saúde, da sua família. O grau de atenção que você precisa dar é enorme.
Luiz Oscar Niemeyer
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