Chief Adjuah e Dinner Party levam catarse e celebração para fechar C6 Fest
Pelo menos três vertentes foram abertas no jazz dos anos 1960: a política, que se manifestava inequivocamente sobre questões raciais (um álbum emblemático é "We Insist!", de Max Roach); a espiritual, que buscava a transcendência e o êxtase místico pela música (como no John Coltrane de "A Love Supreme" e discos posteriores); e a fusão com a música negra popular, como o R&B, soul e funk (numa infinidade de gravações). Todas estiveram presentes no encerramento do C6 Fest, com Chief Adjuah e Dinner Party.
Essas três tendências, hoje e desde meados da década passada, encontraram no zeitgeist —palavra alemã que significa o "espírito do tempo"— um terreno fértil para voltarem a prosperar.
As cenas mais vibrantes do jazz dos EUA (e da Inglaterra) adaptam para os tempos de hoje o orgulho racial, o resgate da ancestralidade e do êxtase espiritual e um diálogo com as formas mais populares de música de lá, como hip hop e R&B.
Chief Adjuah —já foi conhecido como Christian Scott— é um bom exemplo. Bom trompetista e band leader, ele foi desenvolvendo, ao longo da carreira, uma persona e um estilo de música que cada vez mais reclama o encontro das ancestralidades negra e originária de New Orleans.
O "supergrupo" Dinner Party é formado por músicos que desenvolveram sua arte em um caminho semelhante. São eles o pianista e tecladista Robert Glasper, o saxofonista Kamasi Washington, o multi-instrumentista e produtor Terrace Martin e o DJ e produtor 9th Wonder. Todos trabalharam no seminal álbum de hip hop "To Pimp a Butterfly", de Kendrick Lamar (2015).
Em 2023, Adjuah lançou o álbum "Bark Out Thunder Roar Out Lightning", em que quase nada pode ser reconhecido facilmente como jazz —ele mesmo prefere o termo "stretch music".
Em vez de trompete, o músico toca um instrumento formado por um arco curvado pela tensão de cordas, lembrando vagamente uma harpa, e entoa cânticos de resistência e celebração. É fortemente conceitual.
O Dinner Party, como o nome sugere, é um projeto de música leve, noturna e de astral ato. Saem a combatividade e o jazz espiritual com que Glasper e Washington são conhecidos.
Em vez do hip hop que protesta, toca-se um R&B sofisticado, mas casual, com pouco jazz, excetuando-se algumas harmonias de piano e solos, em geral, curtos, de saxofone.
O palco do Auditório Ibirapuera, porém, não se prendeu ao rigor conceitual dos álbuns dos músicos que encerraram a noite. No fim, o que se viu foi jazz ou algo muito parecido. Contemporâneo, urgente e muito bem tocado.
As duas primeiras músicas que Adjuah apresentou vêm do disco recente. Portanto, foram levadas com a voz e o novo instrumento —que o músico comparou ao arco de Oxóssi. Na sequência, o trompete veio e não mais foi embora.
Foi um show denso, extático, dentro da tradição da estética spiritual jazz e com algumas evocações do Miles Davis elétrico dos anos 1970. Houve poucos momentos de respiro em uma apresentação catártica, em que os músicos tocavam com entrega comparável à das bandas que acompanhavam John Coltrane na fase mais espiritual de sua carreira.
Ajuda nessa impressão a performance do jovem baterista Elé Howell, que se insere na música de forma que lembra o grande Elvin Jones, tocando como se cada momento valesse tudo ou nada.
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Quero receberO Dinner Party veio como um "super trio", sem 9th Wonder, mas com uma bela banda de apoio. Sem os cantores que participam dos discos, restou ao grupo fazer um show de jazz mesmo, com poucos momentos do R&B cool de seus discos. O tom foi abertamente celebratório, mais para festão na piscina que para dinner party.
Teve direito a hino nacional tocado pelo guitarrista brasileiro Carlinhos Rocha, uma tentativa de bossa nova com participação do compositor e cantor James Fauntleroy —que também entoou uma ode ao chocolate— e participação especial de Chief Adjuah, que fez bela dobradinha com o tenor de Kamasi Washington, ele mesmo um dos maiores expoentes do spiritual jazz contemporâneo.
Robert Glasper, que nos álbuns se restringe a colocar belas harmonias nas canções, fez belos solos, às vezes fraturados, distantes do quase easy listening dos discos. Terrace Martin se apresentou bem no sax alto, teclados e vocais (com efeitos).
Destaque para o baterista Justin Tyson, uma máquina focada na propulsão da música. Se Elé Howell lembra Elvin Jones, Tyson se matriculou na escola de Jack deJohnette. Na sexta-feira, o palco do Auditório mostrou que jazz pode ser ótimo e pairar sobre o tempo. No domingo, que ele também pode andar com o espírito de sua época.
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