Além de Ivete e Ludmilla: como a bolha de shows estourou no Brasil
O mercado de shows no Brasil enfrenta uma crise após o período de euforia com o fim das restrições causadas pela covid-19. O otimismo deu lugar a cancelamentos.
É uma ressaca após dois anos de festa.
Ivete Sangalo e Ludmilla desmarcaram turnês em estádios, que seriam realizadas pela produtora 30e, que se transformou no símbolo do excesso de confiança com a volta dos shows.
Mas a crise é mais ampla.
Dezoito festivais já foram adiados ou cancelados no Brasil em 2024. Nove eventos de destaque no ano passado ainda não anunciaram retorno, segundo o projeto Mapa dos Festivais.
As ações da T4F, única produtora brasileira listada na B3, valem menos de um terço do valor de meados de 2021, quando a vacinação no Brasil engrenou e apontou para a volta dos eventos.
A disparada dos custos de logística e produção após a pandemia é o maior problema, apontam produtores ouvidos pelo UOL. O cachê dos maiores artistas já supera os US$ 3 milhões (R$ 15 milhões).
Os maiores festivais e grandes turnês internacionais cobram entre R$ 700 e R$ 1.100 por dia.
Embora os ingressos de R$ 700 tenham se tornado padrão em grandes shows nacionais, um levantamento do Serasa aponta que 70% do público não pagaria mais do que R$ 300 para ver qualquer show, seja de estrela nacional ou internacional.
Analistas de mercado já falam em "estouro da bolha", cenário econômico em que os preços sobem além do seu valor real.
Os próprios responsáveis pelos eventos apontam o excesso de festivais parecidos entre si e de shows com uma expectativa irreal de público.
Custos nas alturas e 'leilão' de artistas
Os custos subiram no mundo inteiro, com altas no transporte e mão de obra. Mas os profissionais ouvidos pelo UOL indicam que o Brasil teve uma dificuldade extra com a chegada "agressiva" da 30e, que jogou valores às alturas.
A empresa recebeu R$ 400 milhões do fundo de investimentos Flowinvest para seu lançamento, em 2021, e passou a pagar cachês que assustaram executivos do setor.
Ao cancelar suas turnês no mesmo dia, 15 de maio, Ivete Sangalo e Ludmilla disseram que a empresa não entregou a logística necessária para as apresentações.
O problema também é apontado por produtores que participaram de outras turnês da 30e. Eles reclamam da "falta de estrutura" de uma empresa que "deu um passo maior do que as pernas".
Em comunicado, a 30e apontou problemas de "demanda" para o show de Ivete, sem comentar o caso de Ludmilla, e disse que a decisão de desmarcar as turnês foi das artistas.
A reportagem procurou a 30e, mas a empresa não respondeu.
As turnês mais visadas do Brasil acabam virando objetos de "leilões" entre as produtoras — leva quem der mais cachê e vantagens aos artistas.
O cantor Jão foi alvo de um deles em 2023. As duas maiores empresas do ramo no Brasil estavam no páreo: a T4F e o escritório nacional da Live Nation, líder mundial do setor.
Quem ganhou o "leilão do Jão", no entanto, foi a novata 30e, que pagou R$ 1 milhão por cada um dos 16 shows da turnê de 2024.
Valores assustam o mercado
Os Natiruts, que não emplacam uma música entre as dez mais ouvidas do país há mais de uma década, levaram R$ 500 mil por 20 shows (R$ 10 milhões no total) de sua turnê de despedida.
Kendrick Lamar recebeu US$ 2 milhões (R$ 10 milhões) por uma noite no festival GPWeek.
Kendrick é muito mais popular nos EUA do que no Brasil — tanto que as cadeiras do Allianz Parque tinham espaços vazios. A produtora não informou o público presente.
Os contratos de shows sempre têm cláusulas de confidencialidade. Por isso, alguns profissionais pediram para não serem identificados nesta reportagem.
Um deles, empregado da T4F, contou que a ordem na empresa passou a ser não tentar mais competir nos "leilões" com a 30e.
A direção avaliou que eles [da 30e] estavam malucos. Os preços estavam exagerados para o tamanho dos eventos e iriam levar a prejuízos. Funcionário da T4F
Em meio aos exageros, no entanto, havia exemplos de sucesso.
"Tivemos Titãs, NX Zero (feitos pela 30e em 2023) e Sandy e Junior (pela Live Nation em 2019). São artistas que não estavam disponíveis antes. A ausência criou uma demanda, que justificou shows de estádio", descreve o produtor Roberto Verta.
"Mas é uma coisa rara. Muita gente passou a achar que tocar em estádio era fácil, mas não dá para esperar que aconteça sempre", completa Roberto, que foi gerente de turnês internacionais da T4F até 2013 e hoje trabalha na gravadora Sony Music.
Sucesso da turnê dos Titãs enganou
A reunião da formação original dos Titãs vendeu mais de 600 mil ingressos em 46 shows pelo Brasil.
A banda triunfou no palco, mas os bastidores eram cheios de problemas, relata um profissional.
"Muita coisa só aconteceu porque os Titãs são cercados de produtores experientes. A 30e 'se fez' em cima de algo que eles não tocaram sozinhos. Os artistas passaram a achar que eles eram 'midas'", diz.
Um dos shows dos Titãs, em Campo Grande, teve que ser cancelado pois a 30e não conseguiu levar os equipamentos a tempo. Eram 8.000 ingressos vendidos, e simplesmente não aconteceu.
Segundo o profissional, a 30e mexeu com o ego dos outros artistas e os fez acreditarem que também encheriam estádios.
"A Ivete não enche estádio há anos. No show do Maracanã de 2023, tiveram de distribuir ingresso gratuito. Tentaram dar passos muito maior do que as pernas. Teve uma falta de experiência e uma 'egotrip' gigante", afirma.
A empresa tem como sócios Caio Sentinaro Jacob, Gustavo Luiz de Oliveira e Petrônio Cunha Corrêa Neto. É o último, conhecido como Pepeu Corrêa, que toma a frente dos projetos, relatam vários profissionais à reportagem.
Pepeu é neto de Petrônio Cunha Corrêa, um dos maiores publicitários do Brasil, fundador da MPM Propaganda e do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).
Ele trabalhou no mercado financeiro e foi membro do conselho de administração da JHSF, empresa do setor imobiliário.
A Artesanal, gestora do fundo que aportou R$ 400 milhões na 30e, diz que a empresa está em dia com as obrigações do negócio — sem informar se há lucro ou prejuízo.
O UOL revelou que a 30e tem R$ 2,6 milhões em dívidas trabalhistas relativas a dez processos abertos no sistema do Ministério do Trabalho.
A 30e foi com muita sede ao pote sem estrutura. O que eu senti foi problema de gestão. A empresa cresceu muito rápido e a equipe tinha demandas que não era capaz de realizar. Produtor que acompanhou outra grande turnê da empresa
Demora para a chegada de equipamentos e até para confirmar o local dos shows são exemplos de falhas. O produtor relata atrasos nos pagamentos no início de 2024.
"Eles tiveram problemas no fluxo de caixa depois do show da Ivete, onde investiram muito e não tiveram muita receita. Mas, depois disso, ao menos eu não tive mais problema em receber."
Uma fonte próxima à produção do NX Zero afirma que a banda tenta cobrar até hoje da 30e R$ 3 milhões pela turnê que terminou em dezembro.
A informação foi revelada pela revista Piauí e confirmada pelo UOL.
No dia 10 de março, João Vinícius Ferreira Simões, de 25 anos, morreu eletrocutado ao encostar em um food truck na plateia da edição carioca do festival I Wanna Be Tour, realizado pela 30e.
Em reportagem do UOL de 10 de março, a mãe de João, Roberta Isaac Ferreira, 45, afirmou que entrou com a polícia no Riocentro. "Tudo estava sendo desmontado, a área do acontecimento não foi preservada para a perícia", disse ela.
A delegada do caso, Elaine Rosa, disse à rádio CBN que a equipe da 30e desfez a estrutura do local antes da chegada dos peritos, o que prejudicou a investigação.
Mesmo assim, a Polícia Civil prosseguiu com a perícia. Funcionários da empresa e do Riocentro, onde ocorreu o evento, foram indiciados.
Ivete, Ludmilla e o 'chá alucinógeno'
Ivete e Ludmilla cancelaram suas turnês no mesmo dia. O UOL apurou que as duas se encontraram no anúncio do Dia Brasil do Rock in Rio (29 de abril). Lá elas conversaram e perceberam que tinham o mesmo problema, assim como outros artistas.
Ivete estava tentando resolver desde dezembro as questões de logística, e teve várias reuniões, sem a intenção inicial de cancelar.
Um show em Maceió chegou a ser anunciado no estádio Rei Pelé antes de ter autorização. A produção soube só depois que o local estava parcialmente interditado para reformas. As vendas foram bloqueadas, problema que aconteceu em outros lugares.
"Eles culpam a venda, mas foram muito 'mirins'", avalia um profissional.
Um promotor veterano de megashows no Brasil, que pediu para não ser identificado, avalia que as expectativas para 30 shows de Ivete e 19 de Ludmilla em estádios e grandes espaços era superestimada desde o início.
Houve erro dos dois lados. O pessoal da Ivete e da Ludmilla poderia ter questionado a ambição. Eu acho que todo mundo tomou o mesmo cogumelo, o mesmo chá alucinógeno.
Os contratos da 30e costumam prever o pagamento de metade do total dos cachês antes do início da série de shows. O valor restante é pago em parcelas ao longo do projeto.
Os cachês são uma garantia mínima de pagamento. O lucro com o evento também é dividido entre o artista e a produtora.
Trabalhando dessa forma, o artista não tem risco de prejuízo. Já a produtora precisa de casa cheia e bons patrocínios para lucrar.
Isso significa que ela precisa dimensionar bem o evento — o que não ocorreu nos casos de Ludmilla e Ivete.
Os acordos também preveem multas em casos de cancelamentos. No caso de Ivete e Ludmilla terem recebido os cachês adiantados, pode haver uma briga entre elas e a 30e sobre o pagamento de multa.
Um produtor que já trabalhou com a empresa entende que essa briga poderia ocorrer, mas que, no fim, o cancelamento foi bom para ambas as partes.
"Você iria expor muito o artista. Elas se livram de apresentar shows vazios e a empresa, de prejuízos na turnê."
Maré boa só para peixes grandes
O mercado ainda está favorável para artistas muito grandes, que enchem estádios. O problema é para os médios e pequenos, avalia Phil Rodriguez, dono da Move Concerts, que traz Iron Maiden e Eric Clapton ao Brasil em 2024.
"O normal é começar em clubes, teatros pequenos, teatros maiores, arena e depois estádio. Cumprir cada passo. Para os artistas estrangeiros, o custo da América do Sul impede de trazer para shows médios."
Até os cantores daqui querem pular as etapas. "Antes artista nacional fazia as casas menores. Estádio não é para todo mundo. Vender ingresso não é direito divino", afirma o produtor.
"Meu conselho é: comece no nível em que você está. Não dá para lotar uma arena, vai para o teatro, vai crescendo. Esse é o caminho. Vai trabalhando, ganhando experiência até virar faixa-preta."
Estamos numa fase em que o gigantismo impera. Ninguém quer fazer um show legal para 600, 700 pessoas, quer um festival. Há nomes para fazer um negócio médio, mas querem botar 8.000 pessoas na Marina da Glória. André Barcinski jornalista e produtor
Sem revelar nomes, Barcinski e Roberto Verta dizem ter produzido shows de artistas com músicas com mais de 1 bilhão de plays no streaming que tiveram públicos decepcionantes.
Sucessos avulsos e seguidores nas redes não garantem casa cheia. O excesso de exposição na TV e nas redes costuma ter o efeito contrário nas bilheterias.
"Você banaliza a sua imagem. Ninguém vai comprar ingresso para ver alguém que já aparece toda hora", diz Dody Sirena, ex-empresário de Roberto Carlos e promotor que já trouxe Guns N' Roses e Michael Jackson ao Brasil.
'Você não vê o Chris Martin do Coldplay postando 'fui dormir', 'acordei', 'olha minha roupa'. A maioria dos artistas brasileiros está nesse desespero desenfreado de ter seguidores e vão na contramão do que deve ser feito. Eles estão se desvalorizando", entende Dody.
O veterano viu a onda recente refluir por um detalhe.
Em 2023 aumentou muito o número de pagamentos parcelados de ingressos. A maioria do público parcela no máximo de vezes possível. É uma demonstração de que o público não tem dinheiro para tudo isso.
Dody Sirena empresário e produtor
"Não conheço a empresa (30e) e não sei o que aconteceu com Ivete e Ludmilla. Mas claro que fico preocupado, porque o mercado como um todo é prejudicado com situações como essas."
Ele teme a imagem ruim que os cancelamentos podem passar, mas ainda se diz otimista com os eventos bem calibrados. Grandes shows e festivais não devem deixar de acontecer.
"Fizemos Ivete com Rod Stewart no ano passado, por exemplo, e foi um sucesso. Só não teve show extra porque o Rod não tinha agenda", compara Dody.
Os veteranos pregam cautela e dizem que os eventos e artistas que navegarão na maré baixa são os de identidade única. Esta está longe de ser a primeira crise no setor.
"Minha visão é de quatro décadas de altos e baixos. Tivemos ditadura, democracia, inflação, Plano Collor, Plano Real. E sobrevivemos. Isso é Brasil", conclui Phil Rodriguez.
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