Uma série de processos judiciais entre o filho, a viúva e os ex-colegas de Chorão revela como um dos roqueiros mais populares do Brasil deixou um legado tão lucrativo quanto caótico.
O UOL teve acesso a documentos que revelam as cifras e a origem do embate acirrado.
Graziela, viúva do artista, acusa Alexandre, filho do músico de outro relacionamento, de esconder os ganhos com as marcas ligadas a Chorão e ao Charlie Brown Jr. para não precisar dividir com ela.
Alexandre, que diz operar no vermelho, ainda é processado pelos ex-companheiros de banda do pai pelo uso da marca Charlie Brown Jr.
Em sua defesa, o filho de Chorão revela a existência de um contrato de 2005 em que o pai descrevia um repasse de R$ 650 mil aos músicos, "comprando" os direitos do grupo.
Os ex-integrantes, contudo, afirmam que o documento não anula o direito dos demais de usar o nome Charlie Brown Jr. em shows.
Eles ainda acusam Alexandre de usar a assinatura forjada da empresa Peanuts, proprietária dos direitos do personagem Charlie Brown, do quadrinho do Snoopy, em uma falsa autorização de uso da marca.
Viúva questiona filho de Chorão
Onze anos após a morte de seu líder, o Charlie Brown Jr. ainda é a banda de rock mais ouvida do país.
A explosão recente de faturamento no streaming ajudou a pagar uma dívida milionária que Chorão deixou com a gravadora quando morreu, em 2013.
Nos bastidores, porém, impera o caos. O acordo de partilha dos bens de Chorão só foi fechado em 2021.
Alexandre e Graziela, os herdeiros, dividiram:
- Um apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo, avaliado em R$ 7 milhões
- Dois apartamentos em Santos avaliados em R$ 2 milhões cada um
- Um carro Audi, avaliado em R$ 60 mil
- Um terceiro apartamento em Santos, sem valor declarado, doado por eles à mãe de Chorão, Leonilda Zanoni Abrão
As partes também dividiram os direitos futuros de faturamento das músicas, da imagem de Chorão e da marca Charlie Brown Jr.
São esses direitos que geraram a disputa atual.
Alexandre e Graziela nunca foram próximos -- ele é fruto de um relacionamento anterior de Chorão com a advogada Thais Lima.
Mas, em 27 de abril de 2022, o filho recebeu uma carta da viúva.
Ela reclamava não ter recebido sua parte em licenciamentos da obra e pedia a lista de contratos fechados por Alexandre, que não respondeu.
A queixa foi levada à Justiça quatro meses depois.
Graziela afirmou na ação que Alexandre escondia contratos "de forma desleal" e ganhava "polpudas quantias dos direitos deixados pelo finado sem repassar um centavo sequer a ela".
O juiz determinou, em 3 outubro de 2022, que o filho mostrasse esses registros financeiros em 15 dias. O prazo não foi cumprido.
Alexandre já admitiu ter recebido R$ 449 mil com os contratos, em tabelas informais apresentadas no processo.
Graziela considerou o material incompleto e "imprestável". Para avaliar os documentos, o juiz pediu uma perícia financeira, que ainda não terminou.
A viúva não se opõe a um acordo amigável e "só deseja que sua parte seja devidamente paga", diz ao UOL o advogado dela, Maurício Cury.
Os advogados de Alexandre não quiseram dar entrevista.
Dívida de R$ 3,2 milhões
Alexandre afirma na ação que a empresa com a qual administra o legado do pai, a Green Goes, é deficitária. Ele relata ter altos gastos burocráticos e uma dívida "impagável", como ele chegou a descrever em entrevistas.
Documentos aos quais a reportagem teve acesso mostram que Chorão deixou uma dívida de R$ 3,2 milhões.
Ela é resultado de "adiantamentos" feitos ao artista pela EMI. A gravadora foi vendida em 2012 à gravadora Universal, que passou a ser a credora.
O contrato de antecipação de direitos, cedido às estrelas mais populares, era feito em cima de projeções de vendas de discos, explica um antigo diretor da EMI, Jorge Davidson.
Se uma obra não fosse entregue ou a venda não atingisse as previsões, o resultado seria só um: "Prejuízo para os artistas", diz o executivo.
Esse prejuízo fez com que os herdeiros de Chorão ficassem sem receber direitos artísticos por oito anos: todo o lucro das vendas de discos e recolhido via streaming, entre 2014 e 2022, foi usado para abater a dívida com a gravadora.
A popularidade de Chorão foi responsável por uma virada. Nos últimos anos, a renda da banda explodiu no streaming.
É um fenômeno de resistência do rock — o Charlie Brown Jr. é o único do gênero entre os 50 artistas mais ouvidos do Brasil no Spotify.
Os direitos artísticos trimestrais passaram de R$ 20 mil, em 2014, para mais de R$ 320 mil em 2022.
Assim, a dívida que parecia "impagável" foi quitada em 2022.
Hoje os herdeiros já recebem os direitos. O alívio nas contas, no entanto, não encerra as disputas.
Contrato sigiloso
O Charlie Brown Jr. começou a ruir quando ainda estava no topo, em 2005.
Com os músicos questionando a divisão de dinheiro, a formação original foi desfeita num clima péssimo.
O livro "Champ: A Incrível História do Baixista Champignon", escrito por Pedro de Luna após a morte do baixista, em 2013, revela que os integrantes haviam descoberto que os cachês pagos a eles eram muito inferiores ao valor real dos contratos.
Nenhum envolvido fala abertamente sobre o assunto. Muitos alegam "respeito a pessoas que já não estão mais aqui".
Em abril de 2005, todos os músicos anunciaram a saída em conjunto.
As condições foram acordadas em um contrato sigiloso, revelado pela primeira vez nos processos aos quais o UOL teve acesso.
Nele, Chorão estipulava valores pendentes a serem pagos ao guitarrista Marcão, ao baixista Champignon e ao baterista Pelado (Thiago Castanho havia deixado a banda em 2001).
O vocalista pagou aos músicos o total de R$ 650 mil à época (R$ 2,17 milhões, em valores corrigidos).
Alexandre usa hoje esse contrato como uma prova de que o pai "comprou" a parte dos integrantes com o tal adiantamento da gravadora.
De fato, uma das cláusulas estipula que os ex-integrantes não poderiam usar o nome Charlie Brown Jr.
Marca 'depreciada'
"Depois de tantas polêmicas, o valor do cachê dos shows já não era o mesmo, e os gastos com a pista (de skate), o escritório, a banda, marcas de roupa e os impostos que essas empresas geravam só aumentavam", escreveu Graziela sobre o período após a saída dos músicos na biografia "Se Não Eu, Quem Vai Fazer Você Feliz?".
Champignon e Marcão voltaram à banda em 2011, mas a expectativa de reviver os anos de ouro não foi cumprida.
Era uma dupla crise: da banda e da indústria. Na era do MP3, não se vendia tanto CD nem se lucrava com streaming.
Para completar, Chorão criticou Champignon no meio de um show em outubro de 2012, em Apucarana (PR). Chorão disse que Champignon "voltou por dinheiro" e que o baixista havia falado "uma pá de merda".
No meio da exposição pública, o vocalista perguntou a Marcão: "Eu roubei alguém nessa p* dessa banda?". "Não", respondeu o guitarrista.
A cena constrangedora fez a produção do Rock in Rio 2013 cancelar o convite ao Charlie Brown Jr., conta ao UOL Samantha Jesus, agente de shows da banda na época.
Mesmo assim, ela via uma retomada.
"Essa transição, com a saída do Champignon, Marcão e Pelado, depreciou a marca. Chorão foi reconstruindo aos poucos. Quando eles voltaram, começou uma ascensão. Mas quando foi colher os frutos dessa decolagem, ele faleceu", diz.
Chorão morreu por overdose de cocaína em 6 de março de 2013. Os remanescentes formaram a banda A Banca. Champignon cometeu suicídio em 9 de setembro do mesmo ano.
Depois, Marcão formou a banda Bula. Nenhum desses projetos chegou perto da popularidade do Charlie Brown Jr.
Músicos contra Alexandre
Em 2021, Alexandre sentou com Marcão e Thiago Castanho para planejar uma turnê comemorativa de 30 anos da banda. Um contrato foi firmado, e as primeiras datas anunciadas.
A paz foi breve. No fim do mesmo ano, os guitarristas pediram na Justiça o cancelamento do contrato.
De um lado, Thiago e Marcão se sentiram inseguros com os termos da parceria, "que traziam sérios riscos financeiros aos músicos", diz o advogado dos músicos, Jorge Roque.
Do outro, o herdeiro apontou postura intransigente dos guitarristas.
Os atritos impedem, inclusive, o lançamento de músicas inéditas e sobras de estúdio. Algumas estão sob posse de Marcão, que não concorda em ceder os direitos a Alexandre.
O filho usa o documento de 2005 e o acordo da turnê de 2021 para argumentar que os músicos reconheceram que a marca Charlie Brown Jr. era só de Chorão.
No processo, Alexandre argumenta que, desde o rompimento, quando "comprou" os direitos da banda, Chorão contratava e pagava cachês a todos os músicos, substitutos ou ex-integrantes.
E mostra cópias dos cheques dos cachês pagos pelo pai em 2005 — de R$ 2.000 a Castanho, por exemplo.
Quem é o dono do nome?
Os guitarristas dizem que são cofundadores do grupo e que, até a ocasião, "tanto a banda como Chorão sempre fizeram uso desprotegido e desautorizado da marca".
Aqui entra outra pendência deixada por Chorão. Desde 1997, ele fez vários pedidos, mas nunca conseguiu registrar a marca "Charlie Brown Jr." no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual).
A barreira sempre foi o personagem "Charlie Brown", registrado pela Peanuts, empresa norte-americana que cuida dos direitos dos herdeiros de Charles M. Schulz, criador do Snoopy e seus amigos.
Numa virada improvável, digna de manobra de skate de Chorão, o INPI aceitou um recurso do filho em agosto de 2022.
Alegando que a banda e o personagem são marcas diferentes, Alexandre ganhou o que o pai nunca conseguiu: o registro do nome.
Parecia uma vitória definitiva de Alexandre. Tanto o INPI quanto a Justiça reconheciam que a marca "Charlie Brown Jr." é dos herdeiros de Chorão.
Atualmente, os músicos só podem usar a marca de forma composta com seus nomes ("Marcão Britto e Thiago Castanho Charlie Brown Jr. 30 Anos").
Alexandre entrou com uma ação para barrar até esse uso misto, mas perdeu na Justiça em fevereiro.
Golpe e um limbo
Mas as viradas não param por aí. Os músicos fizeram uma nova denúncia pesada: Alexandre apresentou um documento falso ao tentar o acordo tão sonhado pelo pai.
É um "acordo de coexistência de marcas", assinado por uma suposta representante da Peanuts no Brasil, que daria autorização aos herdeiros de Chorão para usar o nome.
Meses depois, a própria Peanuts entrou com uma representação, negando que tal acordo tivesse sido feito com o herdeiro.
A assinatura da representante havia sido forjada.
Alexandre admitiu a Splash, em fevereiro, que caiu no golpe de uma pessoa que fingia ser representante da Peanuts: assinou o acordo e só depois descobriu se tratar de um documento falso.
Para comprovar a versão, anexou no processo um boletim de ocorrência registrado por ele um ano antes, dizendo-se vítima de fraude.
A reportagem foi até o escritório da Affinité Marcas e Patentes, empresa que procurou Alexandre com o acordo falso.
A proprietária Juscelina Souza confirmou a falsificação e responsabilizou um funcionário da época pelo golpe.
O valor cobrado pelo documento, R$ 25 mil, foi devolvido a Alexandre.
A SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública do estado de São Paulo) disse ao UOL que o caso não foi investigado.
O delegado pediu mais informações aos advogados de Alexandre sobre a acusação de fraude, mas nunca houve retorno.
O filho diz, no entanto, que o INPI concedeu a marca sem considerar o documento forjado.
Ele foi apresentado na ação judicial de Marcão e em outros pedidos ao INPI, mas não no processo em que ele conseguiu o direito ao nome.
A existência do documento falso, entretanto, pode colocar a marca Charlie Brown Jr. em um limbo.
Destinos incertos e conectados
Tanto a Peanuts quanto Marcão recorreram da decisão do INPI de dar a marca a Alexandre.
O órgão disse ao UOL que as apelações só devem ser julgadas no fim de 2024 ou em 2025. A decisão do INPI ainda poderá ser questionada na Justiça.
"Como o resultado deve contrariar um dos lados, é alta a chance da contestação judicial, que costuma levar anos. Esse caso está longe de um desfecho", analisa a especialista em marcas Luciana Minada, do escritório Kasznar Leonardos.
A perda da marca afetaria não só a disputa entre filho e músicos. Graziela divide com Alexandre a posse do nome Charlie Brown Jr, conforme o inventário.
O UOL procurou insistentemente Alexandre, seus advogados e familiares, que não quiseram se manifestar.
O advogado dos músicos, Jorge Roque, afirma que eles "não descartam uma composição amigável com Alexandre" e pontua que ambos são autores e titulares de vários sucessos, como "Proibida pra Mim", "Zóio de Lula", "Lugar ao Sol" e "Só os Loucos Sabem".
"Eles são os únicos que hoje podem executá-las ao vivo, devido à morte dos demais integrantes fundadores. Assim, eles precisam ter resguardados os seus direitos artísticos e profissionais também", diz o advogado.
Se antes Alexandre e os músicos trocavam acusações nas redes sociais, a temperatura dessa batalha judicial fez com que os personagens da disputa ficassem reclusos.
O guitarrista Marcão Britto atendeu a reportagem, mas não quis comentar o processo.
"A gente só quer tocar e ser reconhecido pela nossa obra", afirmou.
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