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Sampler orgânico e 3 tambores: faz 30 anos que 'Da Lama ao Caos' mudou tudo

Adriana Amâncio

Colaboração para Splash, no Recife

29/05/2024 04h00

Enquanto preparava a turnê dos 30 anos do icônico álbum "Da Lama ao Caos", o vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe, bateu um papo com Splash. Ele contou detalhes ainda pouco conhecidos dos bastidores da produção do disco que inaugurou a discografia da banda Chico Science e Nação Zumbi, que levou batuques afro e indígenas para a cena rock e que virou a chave da música brasileira.

Capa do álbum 'Da Lama ao Caos', que completa 30 anos em 2024 Imagem: Reprodução

Um exemplo é que o "Bom Tom Rádio", um programa feito por ele, o designer Mabuse e Chico Science nos anos 1980 foi um dos laboratórios do disco. Du Peixe acredita que o álbum envelheceu bem, com versos atuais e com uma proposta que mescla batuques afro e indígenas com rock e hip hop ainda bastante inspiradora.

Um dos marcos históricos da música popular brasileira, certamente, é o lançamento, em 1994, do álbum "Da Lama ao Caos". A obra integra a lista dos 100 álbuns mais importantes do mundo, segundo a "Rolling Stone". Em 2022, foi escolhido o melhor disco da MPB nos últimos 40 anos em enquete promovida pelo jornal "O Globo" com 25 especialistas em música de todo o país.

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Chico Science se apresenta em Nova York em junho de 1996; álbum 'Da Lama ao Caos' competa 30 anos Imagem: David Corio/Getty Images

A sonoridade inovadora que mescla funk, rock, maracatu, embolada, psicodelia e música africana influenciou bandas experientes, como Os Paralamas do Sucesso, Charlie Brown Jr. e O Rappa, e cantores como Gilberto Gil e Cássia Eller. A música popular brasileira não foi mais a mesma a partir de 1994.

Todavia, até se consagrar um clássico, o álbum era um sonho e alvo de experimentações de um grupo formado por nove jovens das periferias do Recife e região metropolitana. Chico Science, então líder da banda, inicia o trabalho ao lado do bloco afro Lamento Negro, no espaço Daruê Malungo, no bairro de Chão de Estrelas, zona norte do Recife.

Um dos criadores do movimento mangue beat, Chico Science (1966-1997), lidera a Nação Zumbi em sua estreia nos EUA, no Central Park Summer Stage, em Nova York, no dia 18 de junho de 1995 Imagem: Jack Vartoogian/Getty Images

Essa mistura de pop e sonoridade africana ganha outras referências sonoras no programa "Bom Tom Rádio", realizado nos anos 1980 pelo designer e músico Mabuse, Jorge Du Peixe e Chico Science. "Ele tinha muitos discos e a gente ouvia todos", recorda Du Peixe que, ao lado de Chico, também dançava break nas festas da Legião Hip Hop. O hip hop também compõe o mosaico sonoro de "Da Lama ao Caos".

Outros ritmos que ganham referência na sonoridade do álbum são o maracatu rural ou de baque solto, manifestação folclórica de Pernambuco, encabeçada pelo caboclo de lança. E o maracatu de baque virado, um ritmo afro, que anima um cortejo real.

A essência de "Da Lama ao Caos" costura essas referências com rock nacional, regido pela filosofia de promover "uma evolução musical", que une ancestralidade e modernidade, "uma espécie de sampler orgânico, que brinca com os graves dos tambores em arranjos de rock", resume Du Peixe.

No estúdio

A formação da Nação Zumbi que gravou o lendário álbum tinha Chico Science (voz), Lúcio Maia (guitarra), Dengue (baixo), Toca Ogan (percussão), Jorge du Peixe, Gilmar Bolla 8 e Gira (alfaias) e Canhoto (caixa). À frente das alfaias, Gilmar Correia, o Gilmar Bolla 8, relembra que foram feitas três demos do "Da Lama ao Caos".

Álbum 'Da Lama ao Caos', de Chico Science e Nação Zumbi, permanece influente até hoje, 30 anos após seu lançamento Imagem: David Corio/Getty Images

Duas delas eram mais simples e a terceira e última foi realizada em um estúdio profissional, localizado no bairro de Boa Viagem. "Essa última nós fizemos a pedido da Sony Music para ser apresentada ao produtor Liminha. Cada um de nós tinha uma vivência. Eu era do coco, do maracatu, do afoxé, do samba reggae. A junção de tudo isso era o 'Da Lama ao Caos'", explica.

A banda chegou ao estúdio sem baquetas adequadas para tocar. As baquetas usadas na gravação foram doadas por João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso.

Uma vez o projeto aprovado, quando a banda chega ao estúdio, o produtor, Liminha, especialista em groove, baixo, guitarra, tinha tambores para trabalhar. "Ele [Liminha] falava que era uma bateria sem chimbal [combinação de dois pratos] de cinco pessoas, que eram três tambores, um caixa e um cara na percussão. Para ele foi muito novo", recorda. Já Du Peixe relembra que Liminha "sentiu a diferença ao ter que microfonar três tambores de pele animal no estúdio".

Após muito trabalho em estúdio em meio às adaptações de todos, "Da Lama ao Caos" ganha o público e leva o som do Recife para o Brasil e para as novelas globais. Os hits "A Praieira" e "A Cidade" emplacam nas novelas "Tropicaliente", de 1994, e no remake de "Irmãos Coragem", de 1995, respectivamente. Jorge reconhece que tudo conspirava a favor de a música do manguetown romper barreiras e ganhar o Brasil.

Momentos da turnê de Chico Science e Nação Zumbi, na Europa, nos anos 1990 Imagem: Acervo Nação Zumbi

"A MTV deu um pulo em Recife, o Abril Pro Rock estava nascendo, e o manifesto Mangue acabava de ser lançado, tudo favoreceu", avalia Du Peixe.

Splash ouviu o criador do Abril Pro Rock, que acompanhou de perto os primeiros passos do álbum, Paulo André. Ele recorda que antes de alcançar esse sucesso longevo, a obra foi ignorada e ganhou os primeiros ecos na América do Norte e Europa.

As rádios de rock 89 FM, Brasil 2000 e 97 FM disseram que não iam tocar 'Da Lama ao Caos' porque era regional. A rádio Atual, que tocava música nordestina, disse que não ia tocar porque era rock. A gente caiu nessa ignorância. Paulo André

O produtor recorda que na mesma época a Sony havia lançado o primeiro álbum de Gabriel O Pensador e Skank. "Gabriel vendeu 250 mil cópias, foi disco de platina, Skank vendeu 100 mil, disco de ouro, e 'Da Lama ao Caos' não chegou a 10 mil. O disco não foi entendido no primeiro momento. Contraditoriamente, aqueles discos que ganharam ouro e platina não fazem mais sentido para uma gurizada de hoje. Já "Da Lama ao Caos' se tornou um disco clássico, considerado um dos mais importantes e que nunca vai parar de vender", avalia.

Du Peixe acredita que "Da Lama ao Caos" poderia ter alcançado notoriedade mais rápido se, na época, as redes sociais já existissem com a mesma força de hoje. "Mas nós [Nação Zumbi] e a internet chegamos juntos. Atravessamos o século juntos. Eu lembro que, quando realizamos uma turnê pela Europa, trouxemos um computador e tentamos fazer a primeira conexão, foi marcante", observa.

Chico Science presente

Jorge Du Peixe acredita que, hoje, Chico Science estaria celebrando a maturidade do "Da Lama ao Caos", mas, fazendo outras coisas. "Chico era um cara que não parava. Ele escutava Kraftwerk [grupo alemão de música eletrônica] e, ao mesmo tempo, Vicente Celestino [cantor ultra romântico]", afirma. Pouco antes de falecer, recorda Jorge, ele falava que tinha planos de fazer discos novos. "Ele queria fazer mais raps, tinha mania de aglomerar as pessoas, compartilhar ideias, pedir opiniões. Certamente, ele estaria feliz com o alcance que o disco teve", especula.

Du Peixe assegura que Chico está presente no dia a dia da banda, hoje, formada por por Jorge Du Peixe (vocal), Dengue (baixo), Toca Ogan (percussão), Marcos Matias e Da Lua (tambores), Tom Rocha (bateria) e Neilton Carvalho (guitarra). "Cada subida no palco é em tom de reverência ao Chico. A cada audição, eu coloco a música em um volume bem alto para ele escutar", complementa.

Letra atual

Quando conversou conosco, o vocalista Jorge Du Peixe havia acabado de chegar da Europa, onde a Nação Zumbi realizou sete shows pela Alemanha, França, Espanha, Suíça e Irlanda. No show de Zurique, o vocalista conta que recebeu no camarim dois fãs, pai e filho. "Ele veio nos cumprimentar, dizendo que o pai dele havia o apresentado à Nação e, agora, ele estava apresentando o filho. Isso é bacana, pois mostra o nosso público se renovando", comentou.

Um ponto de conexão entre o álbum e a nova geração são as letras das canções que atravessaram o tempo, observa o vocalista.

Muita coisa que o disco fala ainda está aí. A fome ainda está aí, a injustiça social ainda está aí. Tem muita gente ainda influenciada por esse disco por causa da perspectiva sonora muito característica. Jorge Du Peixe

Membros da Nação Zumbi, hoje: Toca Ogan, percussão, Alexandre Dengue, baixo e Du Peixe , vocais Imagem: Divulgação

A turnê

A turnê dos 30 anos do álbum Da Lama ao caos tem início no dia 29 de junho, em São Paulo. A série de shows vai ao encontro de um público maduro, que viu o álbum nascer e também da nova geração, que vem sendo alcançada pelas letras e mistura de gêneros e ritmos. O tom da turnê será de memória afetiva, adianta Jorge, de retorno ao passado. "Vamos trazer algumas versões de clássicos como 'Samba Makossa'. Vamos tocar o disco na íntegra, faixa a faixa, em um momento de celebração. Teremos um convidado, mas é bom deixar como surpresa", faz suspense. As novas datas dos shows devem ser anunciadas em breve.

Inspiração para outras artes

Na décima temporada do reality show culinário Masterchef, a chef Helena Rizzo apresentou a sobremesa "Da Lama ao Caos". Baseado na culinária árabe, o prato reflete a obra da Nação Zumbi, banda que ela diz "gostar muito", pois "ele vai tomando forma de maneira orgânica, sem referências prévias," explica. A inspiração veio do contato que a chef, que é gaúcha e chegou em São Paulo no final dos anos 1990, teve com a banda e o álbum. "Eu tinha acabado de chegar a São Paulo e assisti a um show da Nação, já sem Chico Science. Eu também escutava muito o álbum 'Da lama ao Caos'", relembra.

Essas referências estão reproduzidas no visual, nos sabores e aromas da sobremesa, como a própria chef explicou a Splash. "O concreto da cidade de São Paulo — sorvete cinza de gergelim preto —, o caranguejo que sai do mangue e vira gabiru. Gosto do título e achei que fazia sentido nesta sobremesa. O álbum também tinha a ver com as minhas pesquisas culinárias da época", explica.

A chef Helena Rizzo apresentou a sobremesa "Da Lama ao Caos" no programa 'Masterchef' Imagem: Carolina Vianna/Divulgação

O legado

O jornalista José Teles, responsável por registrar mais de quatro décadas da música e cultura pernambucana, lançou, em 2019, o livro "Da Lama ao Caos: que som é esse que vem de Pernambuco". A produção o levou a mergulhar nos bastidores do álbum, que ele avalia ainda não ser bem entendido pelo público.

O autor afirma que Chico deixou um legado de popularizar a cultura popular, algo que o Movimento Armorial se propôs a fazer. Esse movimento surgiu nos anos 1970 com o objetivo de criar uma arte autêntica, baseada nas artes populares. O escritor Ariano Suassuna foi um dos grande expoentes desse movimento.

Até para quem era do Recife, só existia o maracatu de baque virado. O de baque solto era algo distante, da área rural. Chico trouxe a cultura popular para a frente do palco. De repente, Dona Selma do Coco, Lia de Itamaracá estavam cantando no Abril Pro Rock. José Telles, escritor

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